sábado, 27 de março de 2021

Tropeço no Portugal Profundo

 Vamos por partes: o quadro do Caravaggio é só ilustrativo. Dizem as estatísticas desapiedadas do mundo virtual que quando só há texto quase ninguém lê. O retrato ajudará a amenizar o relato. Por outro lado, em se tratando de crenças e mais ainda de gente viva, esta estória, que merece ser contada, exige "luvas de pelica" e como tal não citarei nomes nem colocarei imagens, que também circulam pelo ciberespaço. É desse contraste profundo entre uma contemporanedade feita de tecnologia do imediato, em em oposição com um tempo remoto e profundo, que podem os mais desavisados pensar estar enterrado na poeira dos séculos, que se tece esta narrativa no mínimo estranha.

Saio da grande Lisboa para uma Páscoa em família. O destino é o centro geodésico de Portugal continental, ali para os lados de Vila de Rei. À volta do núcleo familiar e da refeição pascal juntam-se outros amigos em amena confraternização.


É de uma dessas amigas que surge então a tal estória. Não se trata de gente particularmente velha, e não sendo muito letrada, também não é analfabeta. Seria de supor que o acesso à leitura quebrasse amarras com esse tempo longo e antigo de analfabetismo, medo e superstições. Não é o caso.
O caso é que existe em Portugal uma prática de muitas décadas que consiste em juntar grupos de pessoas em autocarros e levá-las em excursões por locais do país considerados de interesse. Santuários ou monumentos naturais, como sejam Fátima, Batalha, grutas da serra D'Aire são comuns. Mas há outros roteiros, naturalmente ajustados pelas empresas de autocarros à população alvo. Por 25€, mais o valor de uma refeição, para quem não quer levar marmita, lá se angariam umas dezenas de turistas.
É num desses circuitos de turismo religioso que se fala de algo extraordinário: uma santinha viva. Ali para os lados de Aveiro em pleno século XXI, há uma terra onde vive uma mulher santa: acamada desde jovem, foi no dia da sua primeira comunhão que terá caído à cama. O milagre é que desde esse dia, não come nem bebe. Assim mesmo a apresenta a mãe aos romeiros que vão aos bandos em busca de santidade e pureza. Os horários são restritos: a santinha, deitada no seu leito, só recebe visitas das 9h às 11h. Não adianta ir lá antes ou depois das horas estipuladas. Com um crucifixo nas mãos, e com tantos romeiros que se perfilam no seu quarto, a santinha não se dirige a ninguém em particular. Apenas move os olhos enquanto vai dizendo "tenham fé, tenham muita fé". Um ou outro romeiro mais afoito, por simples atrevimento, ou porque alguma maleita o atormenta, lá consegue trocar umas palavras. "Não tenhas medo, isso que aí tens não é nada de ruim". Diz a um deles. Os romeiros vão passando e deixando a esmola em dinheiro na cama da santinha.
Façamos as contas: um autocarro de turismo leva à volta de 50 romeiros. Se a esmola for apenas um euro por pessoa, e tendo em conta ainda que só nesse dia havia quatro autocarros parados à porta da santinha, é fácil fazer as contas!
Com objectivo de obter o máximo de informação possível desta estória de um Portugal profundo que subsiste, socorro-me das ferramentas habituais do trabalho de campo: a ingenuidade, "então conte lá"! "A sério, tantos anos só com a Óstia sagrada?". E o novelo lá vai sendo desfiado.
A santinha recebe a vista do pároco da freguesia, legitimando de certa forma a prática, e a estória já leva mais de 40 anos. A jovem sofre e epilepsia severa que a limita e impede de levar uma vida normal. A mãe gere a vida da família e em particular a vida da filha. Pergunto ingenuamente: mas se ela não come nem bebe há tantos anos deve estar muito magrinha! - não, por acaso não está".
A estória da santinha que vive ali para os lados der Aveiro circula na internet. Já meteu tribunal, onde se ponderou tirar a custódia da doente à mãe. O tribunal assim não o entendeu. A Igreja também não repudia, a avaliar pela visita regular do padre, que leva à santinha a sagrada comunhão.

É desta forma se alimenta um Portugal medieval que subsiste até hoje. Não foi só o Estado Novo que manteve os seus mendigos santificados. Seja por ingenuidade, pela força da crença, pela ignorância ou pelo medo, o facto é que o circuito de santos e santinhas subsiste num país onde supostamente a contemporaneidade já teria apagado esses resquícios de medievalismo. Mas basta sair da cidade grande para perceber que não é assim.

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