domingo, 21 de março de 2021

Corpo Divino

Se alguma coisa representa o lado idealizado e simbolicamente representado no ethos de um povo, a religião encerra todo esse valor simbólico por excelência.

Atente-se por exemplo ao induismo: baseado nos seus livros sagrados, os Vedas, temos no primeiro desses livros, o Rig Veda, a representação ideal simbólica da sociedade indú. O sacrifício de um homem primordial, logo no capítulo V desenha a sociedade baseada nos livros e no panteão do induismo. Um homem em que a cabeça representa o dom da palavra e da sabedoria: a cabeça, ou seja os bramanes, detentores do conhecimento e do dom da palavra. Os braços e o tronco, os guerreiros. As pernas, os trabalhadores. Os pés, os intocáveis. A casta não-casta. Os impuros. Hierarquia rígida, onde a ascensão social não pode acontecer. Funciona assim há milhares de anos, até hoje, apesar das roupagens novas que a contemporaneidade lhe empresta. Mas no âmago do induismo essa crença, partilhada por quase um bilião de almas, prevalece forte e operante. Se é verdade que o induismo não é algo cristalizado no tempo, não é menos verdade que não parece provável que esta religião venha a perecer em breve. As crenças emanam do mais fundo da mente humana, são subconscientes ou mesmo inconscientes, constituem a maior parte dos processos mentais e sobrepõem-se ao lado racional, consciente e não simbólico da mente humana.
Noutras latitudes a religião têm a mesmíssima função, ainda que com arranjos e objectos diferentes. É assim com o catolicismo, e foi nesse que eu cresci e fui educado.

Havia, e creio, ainda há, na freguesia a que pertenço por baptismo, São Bartolomeu dos Galegos, uma festa religiosa de grande importância. Acontece sempre a uma Quinta-feira, e claro, é definida e controlada na sua vertente sagrada pela hierarquia da Igreja. O Corpo de Deus representa ele mesmo o homem e a mulher simbólicas, e sobretudo sacraliza a forma como a sociedade deve funcionar. No dia do Corpo de Deus havia antes de mais a santa missa. Em vez de reunir apenas o microcosmos da aldeia, que é também sede de freguesia, ou seja, tem uma posição hierárquica em relação às outras aldeias, casais e povoados que a ela estão associados, reunia todas as pessoas da freguesia. Nesse dia, depois da missa, fazia-se a procissão solene. Todas as aldeias eram chamadas a participar, e há 50 anos apenas uma faltava à chamada, por querelas antigas: o Paço, apesar de pertencer em grande medida à freguesia de São Bartolomeu, havia anos que não participava do Corpo de Deus.

A procissão solene obedecia a uma ordem e a uma hierarquia que supostamente seria rígida, embora se sentisse alguma tensão no ar acerca da organização do cortejo. Desde logo, por ordem da igreja. O corpo de Deus, ou seja, a organização social sacralizada da freguesia reflectia a hierarquia celeste do Catolicismo. Como cada aldeia tinha o seu santo ou divindade predilecta, e como a Igreja define uma hierarquia, ela era escrupulosamente respeitada no cortejo de andores, guiões e bandeiras. Se a memória não me atraiçoa, a abrir o cortejo ia sempre o guião da capela de São Domingos, do Reguengo pequeno. Imponente e belo na sua cor púrpura, outrora imperial e reservada a Césares ou Augustos , com guias e berloques dourados, grande e pesado, impunha respeito. Tinha que ser levado por um homem robusto, tal era o peso e a força que o vento impunha. Logo depois vinha a bandeira da minha aldeia, a Feteira.
Dedicado à Nossa Senhora da Assunção, rainha dos Anjos, tem num lado a imagem da Virgem Maria. A mãe sagrada, do colo doce, o lado feminino do sagrado. Mas do outro lado da bandeira possui um símbolo maior do Catolicismo: o desenho de uma custódia com a Óstia sagrada desenhada no seu interior. Um Sol simbólico, divinizador do masculino sagrado, o resplendor de um Cristo de dupla substância, homem e Deus, ou seja, o divino feito homem entre os homens. É a presença do Santíssimo sacramento, o corpo de Cristo em forma de pão, símbolo da refeição antropofágica presente em qualquer missa. Símbolo maior na hierarquia do panteão católico, a bandeira da Feteira seguia orgulhosamente logo após o guião de São Domingos, que abria o cortejo.

Na frente a custódia solar com o corpo de Cristo, no lado de trás a N. Senhora sobre uma nuvem, bela, em êxtase, de olhos postos no céu, a seus pés anjos. O fundo é o azul celeste, as estrelas, o ouro, e uma prece escrita a ouro.
Depois vinham as outras bandeiras: a de Pena Seca, creio que dedicada a um dos santos mais amados dos portugueses: a doçura de um Santo António de Lisboa, ainda que os italianos o chamem de Pádua. A seguir vinha um enorme cortejo de andores, bandeiras, pendões, lanternas, a cruz da cristandade, e sacerdote que presidia ao cortejo solene, e a banda de música com os seus sons característicos apenas com instrumentos de sopro e de percussão.
E nesse cortejo se reproduz um corpo sagrado, capaz de manter a ordem do microcosmos da freguesia. As tensões sociais, a competição de homens solteiros pelas mulheres casadoiras, eterno motivo de de tensões entre aldeias são ali sublimados, transformados e sacralizados.
No cortejo, além da ordem e hierarquia estabelecidas, a tensão e o conflito da vida profana de cada dia era sublimada, mas não desaparecia. Jovens rapazes que carregavam os símbolos divinos de cada aldeia a que pertenciam, ou seja, cada pedaço do corpo do Deus. As capas que vestiam emprestavam a sacralidade e a pureza requerida a quem toca e carrega símbolos divinos, previamente benzidos por um padre, num momento que transforma para sempre um objecto profano num símbolo eternamente sagrado.
Mas o profano estava lá: a virilidade dos rapazes manifestava-se na forma orgulhosa como a bandeira era transportada. Bem alto, a tentar ser a mais visível, ainda que castigasse os braços de quem a carregava. Um sacrifício pequeno, uma transformação da virilidade profana numa virilidade sagrada. A tensão de um ano inteiro, a guerra e a competição entre aldeias vizinhas, tudo se apaziguava e transformava. Tal como no induismo, com o seu homem sagrado, simbólico e primordial, corpo da sociedade indú, também o Corpo de Deus católico desenha um homem simbólico sagrado. O Corpo de Deus é afinal o corpo de uma sociedade.
A sociedade e de uma aldeia-cento, e das suas aldeias satélites. Desenho e convenção ancestral, empresta ao Homem uma ponte com o sagrado, com a comunhão em vez da competição, com a paz em vez do conflito.
É bonito e eu sinto orgulho de pertencer a esta ordem social. Na sacristia da igreja de São Bartolomeu existe um livro de registo. Nele constam nomes e datas, de casamento e de baptismo. Entre esses nomes estão os meus pais e ancestrais, e até o meu nome.

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