domingo, 21 de março de 2021

O Pote


 Das muitas estórias que escutava do meu pai, à volta da ceia feita no pial da cozinha, com o pai sentado na arquinha, esta era particularmente encantadora, e durante muitos anos pensei ser exclusiva da aldeia.

Só muitos anos depois a encontrei num livro de estórias e lendas de Portugal, com ligeiras variantes por referência à estória que o pai nos contava.
E a estória, que soube recentemente permanece viva, reza assim:
Havia na aldeia um pastor que tinha um rebanho de cabras. As falperras agrestes do planalto das Cesaredas pouco tinham para oferecer, além das escarpas do maciço calcário, no meio do qual só nascia mato e tojo. Ora, já se sabe, ovelhas só comem ervas, não tocando nada mais áspero ou agreste. As cabras por seu turno preferem comer mato. Tojo, espinheiras, casca das árvores, tudo o que tenha folha verde, tenha ou não espinhos, não escapa à língua habilidosa e ágil das cabras, ainda mais por serem bichos apetrechados de cascos e equilíbrio impossíveis, capazes de trepar escarpas ou subir às árvores melhor do que qualquer alpinista.
Aconteceu que o nosso pastor por três noites seguidas teve um sonho, e no seu sonho por três vezes escutou uma voz que lhe dizia :"se queres o teu bem, vai à ponte de Santarém".
Quando na madrugada do primeiro dia acordou para levar o rebanho a apascentar, lembrou-se do sonho e deu-o ao raio do demo. Que tontice, ir a Santarém. Mas o sonho não lhe saiu do miolo!
E na noite seguinte lá veio a mesma lengalenga: "se queres o teu bem, vai à ponte de Santarém". O nosso homem já não sabia o que pensar: duas noites seguidas com o mesmíssimo sonho?!
Bom, havia de esquecer, as cabras iam oucupar-lhe o dia de sol a sol. Tinha nesse dia, como em todos os outros, sem descanso de permeio, que as apascentar, tirar o leite, fazer a coalhada e os queijos, ajudar as cabras prenhes a parir, controlar a rivalidade entre machos, abater algum chibato para vender, ou para comer no almoço da páscoa que se avizinhava. Comida de rico, só acessível em dias de festa, porque o rebanho e os chibos que abatia eram para o prato dos ricos endinheirados. O pastor, pobre, e a sua família, comiam pão, sopa de feijão, peixe fresco quando calhava, e queijos à descrição.
Mais uma noite, e pela terceira vez o mesmo sonho e a mesma voz: "se queres o teu bem, vai à ponte de Santarém"! Acordou de repente, ergeu-se da enxerga onde vigiava o rebanho, tudo tranquilo, e sobre a rocha de calcário branco no canto do curral, poiso de todas as noites, lá estava a russa a olhar fixamente para ele.
Diabos, hei-de ir à ponte de Santarém, que isto há-de querer dizer alguma coisa.
Lá arranjou uma desculpa para a longa viagem, e alguém de confiança para lhe cuidar do rebanho.
E foi assim que o nosso herói deu por si a passear um belo dia sobre a ponte de Santarém.
Andava ele por ali, perdido, para trás e para a frente, já danado consigo mesmo por ter dado importância a sonhos.
Aconteceu que um homem o viu por ali perdido, e ao fim de um tempo foi ter com ele.
- Então amigo, anda perdido? -Sabe lá, sonhos, contou ao fim de um bocado, tenho ganho a confiança no homem que o interpelava. Sonhei três noites seguidas com uma voz que me dizia que havia de encontrar o meu bem se viesse à ponte de Santarém.
- Ho ho ho! Sonhos amigo; vá-se crer em sonhos! Eu também sonhei três dias seguidos que lá prós lados das Cezaredas, - sei lá eu onde isso fica?- Há uma aldeia, e nessa aldeia há um homem que tem um rebanho de cabras, e que todas as noites uma cabra russa dorme em cima de um pedregulho e que debaixo dessa pedra está enterrado um pote cheio de moedas de ouro! Ora amigo, sonhos!!!
O nosso pastor arregalou os olhos, mas nada disse, a não ser concordar. - Pois é, sonhos. Coisas sem firmeza. Despediu-se do homem e rodou à vidinha direito à sua aldeia.
Reza a lenda que não disse nada a ninguém, mas toda a noite correu a russa para fora do seu pouso, escavou à volta da pedra, fez alavancas, suou, e finalmente lá empurrou e rolou a pedra. E lá estava um pote cheio de libras de ouro!
Conta-se pela aldeia ainda hoje que se fez rico, tendo comprado inúmeras propriedades à volta da aldeia, sem não mais, até ao fim dos seus dias, ter necessidade de voltar ao trabalho duro de apascentar o rebanho.
As pessoas têm memória. Às vezes as pedras também. Às vezes temos que escutar os nossos sonhos e saber ler os sinais enigmáticos dos animais com os quais partilhamos uma migalha de existência.
"Se queres o teu bem, vai à ponte de Santarém".

Sem comentários:

Enviar um comentário