domingo, 21 de março de 2021

O Homem que Nunca foi Burro




Um conto da Feteira, ou a estória do homem que nunca foi burro.
Então conta-se assim: na minha aldeia há uma capelinha bonita, dedicada ao culto da nossa senhora da Anunciação, Rainha dos Anjos. Mais comummente chamada de Nossa Senhora dos Anjos.
De desenho simples e arquitectura ingénua, a capelinha é igual a outras espalhadas pelas aldeias das redondezas. Mas a nossa é especial: por ser dedicada à nossa mãe divina, pela bonita estatueta da Senhora, mais a magnífica bandeira onde está pintada, tendo do outro lado do estandarte uma custódia pintada, um símbolo solar, o divino masculino, com a óstia consagrada dentro. Um homem e uma mulher sagrados, ou o divino feito humano.
A cada 15 de Agosto se fazia e ainda faz uma festa em honra da Nossa Senhora.
À missa solene e subsequente procissão, à noite havia a festa profana, com bailarico e comes e bebes. Em criança a festa profana era feita no larguinho em frente à capela. Tendo em conta que até ao século XIX os mortos se enterravam em solo sagrado, junto às igrejas, e que a criação de cemitérios até levou a uma das poucas revoluções que Portugal conheceu, não admira que se bailasse ao lado ou mesmo sobre alguns corpos ali depoditados.
A Feteira é antiga, e a capelinha só por si já ali está há 500 anos.
E porque não? A vida e a morte são as duas faces da mesma moeda. Por certo os velhos espíritos que quem ali possa repousar não haveriam de desgostar da alegria e do calor que a festa dos vivos empresta. Mas a aldeia cresceu, o larguinho frente à capela ficou pequeno, e mais tarde foi necessário um largo maior, passando-se a festa para lá.
Apesar de ser feita ao ar livre - e como eu gostava da festa - das correrias da criançada, dos refrigerantes sem medo nem remorso, que as corridas tudo queimavam, o facto é que por ser feita no meio de Agosto, em pleno Verão, não era garantia de não apanhar com uma intempérie capaz de estragar a festa.
Bem me recordo de algumas trovoadas e de chuva num ou outro 15 de Agosto.
A moda nos anos 80 eram as casas do povo, e já quase todas as aldeias tinham a sua. A Feteira também queria ter a sua.
Felizmente a praga dos sinos electrónicos a debitar avés-marias de 15 em 15 minutos nunca atingiu a nossa aldeia, mas atingiu muitas aldeias vizinhas. Como na altura havia apenas relógios electrónicos, mas não havia sincronização horária entre eles, e a chinfrineira começava com o do Toxofal de cima, passava pela Moita dos Ferreiros, chegava ao Reguengo grande e mais além. Vivendo eu no ponto mais alto do concelho, e apesar de ser criança, muitas vezes desejei ter uma marreta para acabar com aquela poluição sonora!
Mas a casa do povo tinha menos que ver com o sagrado, que deve ser sóbrio e contido, introspectivo e silencioso, incluindo as preces, orações e avés à virgem.
A casa do povo era o espaço do profano, grande para caber toda a gente, e grande porque também nestas coisas o tamanho importa.
Foi pois necessário arranjar um novo espaço onde se pudesse erguer a dita casa do povo, o de se pudesse socializar e bailar à vontade, sem correr o risco de apanhar com alguma chuva fora de época, serôdia ou temporã, consoante o calendário e as necessidades de cada agricultor.
Não foi difícil encontrar um terreno. O Zé Manel tinha uma vinha quase no centro da aldeia. Terreno elevado e protegido por uma frondosa Caneira, de forma rectangular, foi definido para abrigar a nova casa do povo.
Sendo tão alto o terreno, e depois do desenho de arquitectos e engenheiros, a comissão das festas lá pôs mãos à obra.
Veio uma retro-escavadora, um buldozer, e algumas toneladas de terra foram movidas.
E aconteceu que ao escavar apareceram uns ossos.
A estória semi-oficial é que em tempos havia morrido um burro ao Necas, e que eram os ossos do jumento que ali estavam. Mas eu sei que a estória é outra: na verdade era o esqueleto de um homem, e o primo Joaquim confirmou-me isso mesmo.
O receio de embargo da obra e a pressa levaram a um erro e a uma eventual perda inestimável. Porque aquele era um homem, e como tal nunca foi burro, menos ainda o burro do Necas.
O primeiro facto é a ilegalidade, da qual podemos falar agora, ao fim de 40 anos: quando se descobre um corpo humano enterrado temos que parar imediatamente: pode ser apenas um achado arqueológico, mas pode ser muito pior: se for alguém vítima de crime? Assim a lei determina que ninguém toque nos ossos até que os antropólogos forenses venham fazer o estudo e avaliação do mesmo, e que atestem se é achado arqueológico ou algo mais sinistro.
O facto é que o esqueleto daquele "homenzarrão" foi atirado borda fora, sem cerimónias, e a casa hoje está lá.
Façamos aqui um parêntesis: ninguém vive no passado, não devemos efabulá-lo ou endeusá-lo, e sobretudo não devemos impedir que os vivos vivam por causa dos mortos.
Nada tenho contra a construção da casa do povo da Feteira, que cumpre muito bem a sua função. Mas talvez tenhamos perdido uma oportunidade de abrir uma janela para o passado, conhecer quem por cá passou, pelos séculos dos séculos.
Até porque os indícios são tantalizantes.
Há uns dias vi pela primeira vez o brasão da minha aldeia, que tanto quanto sei nunca teve brasão. Mas tem agora, e muito bem. São os vivos quem empresa alma à nossa aldeia.
O brasão é bonito: nas suas cores, o fundo branco (da preciosa farinha), debruado a negro, a mó do moinho, a lembrar os moleiros e o pão sagrado que mata a fome, e os fetos, porque supostamente Feteira significa terra de fetos.
Supostamente, porque também pode vir do latim "Feretrum", corpo morto. Não tenho dados que o suportem, mas não me surpreenderia se a velha Feteira fosse uma antiga necrópole.
A Feteira fica num local interessante. Logo abaixo dela fica o Moledo (moletum), terra pedregosa de calcário, nas falperras do planalto das Cezaredas. Terra menos fértil, em tempos não muito remotos perto do mar, e que o açoreamento fez recuar quilómetros, até Peniche.
Mas no tempo dos Fenícios o mar chegava quase ao Moledo, e há por lá uma pedra, supostamente pertencente a um templo, com um caracter fenício!
Ao lado existe a gruta da Feteira, com achados do neolítico.
E os romanos também por cá passaram, a importante cidade de Eborobritium era aqui ao lado, em Óbidos.
Nesse período o senador romano Gaius Julius Lauros por lá governou esta parte da Iberia, e a sua vila era aqui ao lado, onde é hoje a quinta da Moita Longa.
Feteira tanto pode significar terra de fetos, quanto outra coisa. Porque apesar da proximidade com o Moledo e o maciço calcário, que vem desde a serra de Aire e Candeeiros, passando pela serra de Montejunto e terminando no planalto das Cezaredas e em Peniche, a Feteira já não pertence a esse período geológico.
É uma terra fértil de colinas suaves, fora do maciço calcário. Não me surpreenderia se no passado tivesse sido apetecível para a fixação de populações. Porque se o planalto era rico em caça, de corsos a coelhos, lebres ou ursos, as terras da minha aldeia facilmente cativavam quem quisesse fixar-se à terra, cultivá-la, aplicar-lhe o velho arado, que já cá anda há 5000 anos.
Não sei. Os velhos contavam-me estórias. Mas mas colinas da Feteira, mais as suas pedras, essas andam a murmurar-me outras estórias;
estórias que quero contar antes de embarcar na grande viagem. Mas para isso não podemos deitar fora os ossos de homens que nunca foram burros!
Fatima Da Cruz, Maria João Caldeira e 3 outras pessoas
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