Então conta-se assim: na minha aldeia há uma capelinha bonita, dedicada ao culto da nossa senhora da Anunciação, Rainha dos Anjos. Mais comummente chamada de Nossa Senhora dos Anjos.
De desenho simples e arquitectura ingénua, a capelinha é igual a outras espalhadas pelas aldeias das redondezas. Mas a nossa é especial: por ser dedicada à nossa mãe divina, pela bonita estatueta da Senhora, mais a magnífica bandeira onde está pintada, tendo do outro lado do estandarte uma custódia pintada, um símbolo solar, o divino masculino, com a óstia consagrada dentro. Um homem e uma mulher sagrados, ou o divino feito humano.
A cada 15 de Agosto se fazia e ainda faz uma festa em honra da Nossa Senhora.
À missa solene e subsequente procissão, à noite havia a festa profana, com bailarico e comes e bebes. Em criança a festa profana era feita no larguinho em frente à capela. Tendo em conta que até ao século XIX os mortos se enterravam em solo sagrado, junto às igrejas, e que a criação de cemitérios até levou a uma das poucas revoluções que Portugal conheceu, não admira que se bailasse ao lado ou mesmo sobre alguns corpos ali depoditados.
A Feteira é antiga, e a capelinha só por si já ali está há 500 anos.
E porque não? A vida e a morte são as duas faces da mesma moeda. Por certo os velhos espíritos que quem ali possa repousar não haveriam de desgostar da alegria e do calor que a festa dos vivos empresta. Mas a aldeia cresceu, o larguinho frente à capela ficou pequeno, e mais tarde foi necessário um largo maior, passando-se a festa para lá.
Apesar de ser feita ao ar livre - e como eu gostava da festa - das correrias da criançada, dos refrigerantes sem medo nem remorso, que as corridas tudo queimavam, o facto é que por ser feita no meio de Agosto, em pleno Verão, não era garantia de não apanhar com uma intempérie capaz de estragar a festa.
Bem me recordo de algumas trovoadas e de chuva num ou outro 15 de Agosto.
A moda nos anos 80 eram as casas do povo, e já quase todas as aldeias tinham a sua. A Feteira também queria ter a sua.
Felizmente a praga dos sinos electrónicos a debitar avés-marias de 15 em 15 minutos nunca atingiu a nossa aldeia, mas atingiu muitas aldeias vizinhas. Como na altura havia apenas relógios electrónicos, mas não havia sincronização horária entre eles, e a chinfrineira começava com o do Toxofal de cima, passava pela Moita dos Ferreiros, chegava ao Reguengo grande e mais além. Vivendo eu no ponto mais alto do concelho, e apesar de ser criança, muitas vezes desejei ter uma marreta para acabar com aquela poluição sonora!
Mas a casa do povo tinha menos que ver com o sagrado, que deve ser sóbrio e contido, introspectivo e silencioso, incluindo as preces, orações e avés à virgem.
A casa do povo era o espaço do profano, grande para caber toda a gente, e grande porque também nestas coisas o tamanho importa.
Foi pois necessário arranjar um novo espaço onde se pudesse erguer a dita casa do povo, o de se pudesse socializar e bailar à vontade, sem correr o risco de apanhar com alguma chuva fora de época, serôdia ou temporã, consoante o calendário e as necessidades de cada agricultor.
Não foi difícil encontrar um terreno. O Zé Manel tinha uma vinha quase no centro da aldeia. Terreno elevado e protegido por uma frondosa Caneira, de forma rectangular, foi definido para abrigar a nova casa do povo.
Sendo tão alto o terreno, e depois do desenho de arquitectos e engenheiros, a comissão das festas lá pôs mãos à obra.
Veio uma retro-escavadora, um buldozer, e algumas toneladas de terra foram movidas.
E aconteceu que ao escavar apareceram uns ossos.
A estória semi-oficial é que em tempos havia morrido um burro ao Necas, e que eram os ossos do jumento que ali estavam. Mas eu sei que a estória é outra: na verdade era o esqueleto de um homem, e o primo Joaquim confirmou-me isso mesmo.
O receio de embargo da obra e a pressa levaram a um erro e a uma eventual perda inestimável. Porque aquele era um homem, e como tal nunca foi burro, menos ainda o burro do Necas.
O primeiro facto é a ilegalidade, da qual podemos falar agora, ao fim de 40 anos: quando se descobre um corpo humano enterrado temos que parar imediatamente: pode ser apenas um achado arqueológico, mas pode ser muito pior: se for alguém vítima de crime? Assim a lei determina que ninguém toque nos ossos até que os antropólogos forenses venham fazer o estudo e avaliação do mesmo, e que atestem se é achado arqueológico ou algo mais sinistro.
O facto é que o esqueleto daquele "homenzarrão" foi atirado borda fora, sem cerimónias, e a casa hoje está lá.
Façamos aqui um parêntesis: ninguém vive no passado, não devemos efabulá-lo ou endeusá-lo, e sobretudo não devemos impedir que os vivos vivam por causa dos mortos.
Nada tenho contra a construção da casa do povo da Feteira, que cumpre muito bem a sua função. Mas talvez tenhamos perdido uma oportunidade de abrir uma janela para o passado, conhecer quem por cá passou, pelos séculos dos séculos.
Até porque os indícios são tantalizantes.
Há uns dias vi pela primeira vez o brasão da minha aldeia, que tanto quanto sei nunca teve brasão. Mas tem agora, e muito bem. São os vivos quem empresa alma à nossa aldeia.
O brasão é bonito: nas suas cores, o fundo branco (da preciosa farinha), debruado a negro, a mó do moinho, a lembrar os moleiros e o pão sagrado que mata a fome, e os fetos, porque supostamente Feteira significa terra de fetos.
Supostamente, porque também pode vir do latim "Feretrum", corpo morto. Não tenho dados que o suportem, mas não me surpreenderia se a velha Feteira fosse uma antiga necrópole.
A Feteira fica num local interessante. Logo abaixo dela fica o Moledo (moletum), terra pedregosa de calcário, nas falperras do planalto das Cezaredas. Terra menos fértil, em tempos não muito remotos perto do mar, e que o açoreamento fez recuar quilómetros, até Peniche.
Mas no tempo dos Fenícios o mar chegava quase ao Moledo, e há por lá uma pedra, supostamente pertencente a um templo, com um caracter fenício!
Ao lado existe a gruta da Feteira, com achados do neolítico.
E os romanos também por cá passaram, a importante cidade de Eborobritium era aqui ao lado, em Óbidos.
Nesse período o senador romano Gaius Julius Lauros por lá governou esta parte da Iberia, e a sua vila era aqui ao lado, onde é hoje a quinta da Moita Longa.
Feteira tanto pode significar terra de fetos, quanto outra coisa. Porque apesar da proximidade com o Moledo e o maciço calcário, que vem desde a serra de Aire e Candeeiros, passando pela serra de Montejunto e terminando no planalto das Cezaredas e em Peniche, a Feteira já não pertence a esse período geológico.
É uma terra fértil de colinas suaves, fora do maciço calcário. Não me surpreenderia se no passado tivesse sido apetecível para a fixação de populações. Porque se o planalto era rico em caça, de corsos a coelhos, lebres ou ursos, as terras da minha aldeia facilmente cativavam quem quisesse fixar-se à terra, cultivá-la, aplicar-lhe o velho arado, que já cá anda há 5000 anos.
Não sei. Os velhos contavam-me estórias. Mas mas colinas da Feteira, mais as suas pedras, essas andam a murmurar-me outras estórias;
estórias que quero contar antes de embarcar na grande viagem. Mas para isso não podemos deitar fora os ossos de homens que nunca foram burros!
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