domingo, 21 de março de 2021

O Seu a Seu Dono



Podemos começar por aqui: estes são os frisos do Partenon, o iconográfico edifício construído pelos helénicos na acrópole, em Atenas. Já tive o privilégio de beijar aquelas pedras velhas. Mas no topo do frontespicio do edifício, quase destruído pela ocupação otomana numa explosão acidental porque tinham transformado o Partenon num paiol, existia este belo conjunto de estatuária, um monumento à democracia, à humanidade e ao génio de Fidias, o escultor. Quase tudo o que definimos como raiz do pensamento ocidental nasceu na Grécia. Há décadas que a Grécia reclama à Grã Bretanha a restituição destes frisos, levados para Londres, onde ainda permanecem até hoje no museu britânico, junto com tantos outros tesouros levados do mundo inteiro. Curioso é ver os modernos gregos, que se sentem herdeiros do helenismo, apesar de sabermos que não são descendentes dos helénicos, fazendo esta exigência.
Os gregos modernos são descendentes sim de povos eslavos que desceram ao Poloponeso a partir do século IV. Descendentes dos helénicos são os habitantes das ilhas do Egeu. Mas não são os genes que nos definem. Se os gregos modernos se afirmam herdeiros do helenismo, então são mesmo.
À semelhança destes frisos, podemos pensar noutros tesouros levados para longe e pelos caprichos da História: o obelisco egípcio na praça da Concórdia em Paris, a arte sacra do Louvre, roubada a Portugal pelos franceses durante as invasões do século XIX... Podeira ficar aqui eternamente a dar exemplos de arte vendida, roubada ou pilhada, e que hoje ocupa espaços e lugares remotos, que nunca foram os inicialmente previstos.
Podemos até visitar o museu de etnologia em Lisboa. Há lá uma fantástica colecção de máscaras, utensílios e arte indígena, trazidos do Brasil. Mas como observou muito bem um antropólogo, não fosse o facto de terem sido trazidos e salvos nesse movimento, hoje nada existiria. Porque no seu trabalho de campo entre os nativos, estes assumiram a impossibilidade de manterem tais artefactos, até pela sua cultura sem história, em movimento permanente pela floresta, impossibilitando qualquer museu ou preservação.
A sua cultura é a do improviso e do imediato, não havendo valorização desse passado, ou menos ainda, a patrimonialização da sua cultura. Ou seja, se não tivessem sido recolhidos, provavelmente estariam definitivamente perdidos.
A História humana é uma sucessão infinita de guerras e conflitos, de vencedores e vencidos, de destruição e pilhagem. Mas é também um processo de mudança, evolução e consciência. A Terra está transformada numa aldeia global. Em menos de 24h de avião qualquer recanto do mundo fica acessível.
É este o contexto em que a Joacine veio lançar uma discussão que, estando longe de ser nova, requer atenção e causa desconforto.
É verdade que é necessário pensar na forma como esse património mudou de mãos, como é gerido, se os proprietários originais têm de facto o direito de reclamar como suas essas obras de arte. Sim ou não?
Antes de mais a Joacine (não digo o Livre), tem que tomar consciência de que este problema é antigo, está pensando e regulamentado internacionalmente, e que não se pode generalizar. Cada caso é um caso.
Imaginemos que uma obra de arte levada, digamos, da cidade de Palmira para um museu na Europa, tinha sido devolvida à Síria.
O que aconteceu nos últimos anos com a guerra civil e com a destruição insana do daesh seria a perda provável destes tesouros. A humanidade como um todo tem que decidir como e onde devem estar essas obras de arte, e a forma como todos podemos usufruir dessa memória colectiva. Os budas gigantes do Afeganistão foram destruídos à bomba.
2500 anos de memória destruídos pela insanidade do radicalismo islâmico num segundo.
Fará mesmo sentido devolver a arte aos países de origem, como propõe a Joacine? O que nos diz a prática comum?
Tomemos o exemplo do Egipto: os seus tesouros, as suas múmias, estátuas, papiros... Estão espalhados pelo mundo (a pedra roseta, que abriu a escrita egípcia perdida e que foi trazida de novo à luz só foi possível pela descoberta desta pedra, também ela resguardada no museu britânico).
Mas a maioria da arte do Egipto antigo está ainda lá. O Egipto assumiu que estes tesouros não são seus, são de toda a humanidade. O Egipto é o fiel depositário. O mundo por seu lado assume a tarefa de ajudar o Egipto a preservar a memória que é de todos.
Da minha parte também não exijo a devolução das obras de arte roubadas pela França do Napoleão. A única coisa que peço é que as estime e preserve e que continue a permitir que todos as possam apreciar.
A família humana está cada vez mais integrada, a Terra é cada vez mais pequena, o "melting pot" é a realidade contemporânea.
Não estou de acordo com a Joacine. Não é desta forma que se trata a questão. É dentro das regras e leis internacionais, dentro do trabalho excelente da UNESCO e de todas as pessoas que amam a arte e a memória.
O incêndio do museu do Rio de Janeiro, as destruições provocadas por desastres naturais, ou pior, a destruição propositada dessas obras, obrigam a pensar tudo isto e a fazer bem feito. Será que as prioridades da Joacine são as mais correctas? Para mim não. Este não é o LIVRE pelo qual dei a cara em 2015.

Sem comentários:

Enviar um comentário