sábado, 27 de março de 2021

Escrito nas Estrelas

 

Olho de relance o telescópio. Engenho magnífico de vidros espelhados, tubos e madeira. Objecto semi-tosco, com a pintura maltratada, a destoar na sala nova, inestético, como me disse um outro amigo um dia. Objecto de evasão, gozo de ter saído das nossas mãos, e não de uma loja qualquer, pronto a usar. Ando há anos a ganhar coragem para o pintar de novo. 
De esmalte branco, como me ensinaste um dia, porque é a cor que melhor reflecte a luz solar, para que a óptica não aqueça, deformando-se e inviabilizando as imagens do cosmos, que queríamos tão nítidas quanto possível. Sabes, apenas alguns amigos mais chegados - para além da família próxima, é claro - sabem que o mérito deste objecto que não perdeu aura de fantástico, apesar dos mais de 20 anos passados, não é apenas meu, mas também muito teu. Tinhas já feito o teu próprio telescópio, seguindo a "bíblia" do também saudoso Mestre.
 Espelho esférico, bastante mais fácil de fazer. Quiseste inovar, e um ano depois de andarmos a cortar vidro, as esmerilar vidro, a polir vidro, decidiste que o meu telescópio seria melhor. Eu teria ficado pela esférica. Tu insististe, e partimos para a parábola. Horas infindáveis, noites a fio na APAA a medir e a corrigir a curvatura do espelho com o auxílio do aparelho de Foucault. Esperas intermináveis para que o calor das mãos passado para o vidro se dissipasse, que o comboio passasse por baixo dos nossos pés pelo túnel do Rossio, que os eléctricos acalmassem a sua correria na rua, para que o edifício não trepidasse, para que a temperatura estabilizasse, e para que as medidas fossem fiéis. E foram. 1/27 de onda, reduzido para 1/20 de onda após a aluminização! Um ano depois, e o magnífico aparelho estava a funcionar. Lembro o primeiro espelho secundário que não tinha qualidade suficiente, o aborrecimento de não ter ainda um buscador, para arrelia nossa. Na varanda da tua casa, com um Júpiter a faiscar no céu, e nós nem sequer conseguíamos apontar-lhe a máquina! Mas enfim, retocámos o que faltava. 
Depois disso foram anos de pura evasão. Tempos depois, resolvias partir para outras vivências. O tempo passa, o corpo transforma-se, os sonhos e as urgências tornam-se outros. Pena que às vezes se transformem em pesadelos. Sabes, Camacho (agora já te posso chamar assim, sabes que é apenas uma provocação, os amigos próximos sabiam que detestavas ser chamado assim), às vezes os amigos mais próximos preocupavam-se contigo. Um dia, no observatório do Mestre, este confidenciou-me algumas preocupações acerca de ti. Porque nós gostávamos mesmo de ti. Tinhas uma alma linda, num corpo que não parecia obedecer à ditadura moderna de beleza. Não que fosses um homem feio, mas também não eras bonito. Tinhas passado nas Amoreiras, "catrapiscaste" uma miúda gira de uma loja, que não te ligou nenhuma. Como querias ter a atenção dela a todo o custo, resolveste simular um roubo de caixa. Logo tu, que nem um chupa roubavas em miúdo, que nunca roubaste nada a ninguém. A miúda a accionar o alarme, os "gorilas" a aparecerem, a "convidarem-te" para os acompanhares, e tu, com alma de cordeirinho, a fingir-te de lobo, lá vais. O resultado só podia ser um: a valente tareia que apanhaste! Apesar do enorme respeito que a figura do nosso Mestre nos impunha, não consegui conter o riso. Só se perdeu alguma que tenha caído no chão. Até o mestre se riu comigo. Confidenciou-me então que às vezes tinhas atitudes pouco convencionais. O teu herói lá do bairro era um "acelera" que andava de moto a aterrorizar o bairro. Algum tempo depois começas a dar aulas no secundário. Resolves fazer um teste aos miúdos, para de seguida, no fim da aula, os obrigares a pôr amarfanhados no cesto do lixo! Nesse mesmo ano, no Carnaval, resolves ir dar aulas de peruca amarela!
Perdemos-te o rasto. Tempos depois um outro amigo confidencia-nos que tinhas conhecido uma... como chamar-lhe? Mulher? Uma infeliz, viciada em drogas duras. Partes para a aventura e para a espiral. Perdes o emprego de professor, és posto fora de casa pela mãe, começas a mendigar. Tu, com um curso superior, com uma possibilidade de emprego, não conseguiste resistir aos encantos femininos. Encontro-te um dia à porta da "Versalhes" a pedir. Quando te digo que não precisas de pedir, respondes-me que não pedes, andas antes a "cravar otários"! Fico a remoer, incapaz de responder a um amigo que decidira dar-se a perder. Tempos depois volto a encontrar-te de novo no metro das Picoas, a "cravar". Arrelio-me contigo. Digo-te que o que falta é um pai mais próximo, que te dê uma tareia daquelas de partir um ou dois ossos. Os burros - digo-te - quando são geniosos, põe-se-lhes um freio nos dentes e faz-se-lhes a muda a puxar. - Não, isso não, dizes tu -, e continuas a "cravar". Sabes, ainda hoje me questiono se não te teria feito um favor em dar-te uns valentes murros, já que o pai continuava a exercer a profissão de cirurgião cardíaco lá longe, e não te deitava a mão. Talvez ainda hoje estivesses connosco, a rir dos tempos de juventude. Tu preferiste a espiral. A "menina", como tu começaste a referir-te à tua companheira, estava seropositiva. Nasce uma criança dessa união de loucos, e nasce seropositiva. Não sei se ela ainda existe. Nunca cheguei a perceber se apenas nasceu com anti-corpos ao HIV ou se nasceu já contaminada. Perdes a custódia da criança. A companheira morre (de overdose, de SIDA?). Dizes-me mais tarde que não te contaminou, nem te passou o vicio da heroína. Não me convences. Muitos anos depois sei que de facto passaste a consumir. Tentas-te recompor a tua vida, voltas a dar aulas. Há uns anos um amigo dos "tempos das estrelas" liga-me da Suíça. O nosso Camacho estava morto. Apareceu dentro de um poço, semi-nu, afogado. Fico aturdido, incrédulo. Nunca cheguei a saber o que se passou. Nenhum de nós. No meu espírito fica a convicção de contas de drogas não resolvidas. Pagaste a loucura com a vida, não creio que tenha sido suicídio, vivo na convicção o homicídio. Poucos anos depois o frágil coração do nosso Mestre resolve parar. A colecção dos meus mortos vai crescendo. Inaugurada pela mãe, quando eu tinha 17 anos, vai aumentando inexoravelmente. E sabes Camacho, que eu não quero pintar de novo o telescópio, porque aquela foi a nossa pintura, porque as marcas das tuas mãos estão lá, embora apenas eu as possa decifrar. Pintar de novo o aparelho seria apagar as memórias que o objecto transporta consigo. E eu não quero apagar a tua memória.

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