Eva, mãe primordial ou apenas avó, pouco importa para o caso desta estória. Tinha por profissão ser lavadeira. Numa era onde as máquinas eram uma miragem, haviam apenas ecos onde se escutava de vez em quando que num qualquer país remoto já existiam essas máquinas fantásticas onde a roupa entrava suja e saia lavada! Aventava-se até que algumas senhoras das casas ricas de Lisboa já tinham tais engenhos. O único engenho ali na aldeia era o velho sarilho de madeira que separava o trigo da palha na eira, por alturas do fim do Verão. Podia lá ser?! E se fosse, o que podia isso significar para si ou para as filhas sopeiras, elas mesmas empregadas nessas casas de gente rica em Lisboa? E se um dia essas máquinas chegassem á aldeia, o que seria da vida de quem só tinha para vender a força dos braços para lavar roupa, sua e alheia, lá para os lados do rio da Lameira? Não, isso não havia de ser coisa boa! Tanques comunitários sim. Aí estaria resguardada do sol e da chuva, e no Inverno sempre teria onde aquecer alguma água, quebrando dessa forma o gelo que enrregelava as mãos na água gélida do Inverno. Além do mais, os tanques eram elevados, a posição para lavar seria muito mais confortável, em vez da pedra áspera junto á Ribeira onde perdia conta dos dias sempre iguais, de espinha curvada, olhando as águas correntes, sonhando que tal como elas, que levavam consigo o sabão e a sujidade das roupas, a corrente da vida levasse para longe as tristezas, as agruras e as incertezas dos pobres que tinham as bocas dos filhos para alimentar. Mas ali os pobres estavam condenados a dirigir o olhar para baixo: as mulheres miravam as águas da ribeira, os homens o chão da terra que cavavam. Mas costas direitas e olhar em frente eram luxos quem nem os ricos, nem o regime, nem a fome bem real em épocas de penúria permitiam alguma vez. Até a guerra civil de Espanha, que tanto podia ser ali ao lado, como longe tal qual a lua, lhes trazia a fome já que os parcos recursos do país serviam para matar a fome no outro lado da fronteira, deixando os de cá á mingua de pão.
Mas a Eva era lavadeira. O hospital de Peniche, a poucos quilómetros garantia um fluxo constante de roupas para lavar, permitindo um magro ganha-pão arrancado à lage do rio da Lameira.
Foi num desses transportes de roupa lavada no lombo de um burrito que um dia teve a mais assustadora das experiências: depois de um dia de lavar, estender, secar e dobrar roupa, teve ela mesma que à noite ir ainda entregar as trouxas ao hospital. Albardou o burro, cestos de vime em ambos os lados do lombo do animal, e a carga da roupa lavada distribuída em peso igual para cada lado, equilibrando a carga que ainda teria que entregar nessa noite.
Aconteceu que, ou porque a carga ficou mal distribuída, ou porque a cilha da albarda ficou mal apertada, ou mesmo porque os buracos da estrada e os solavancos eram muitos, a carga começou a tombar. Ela ali sozinha no escuro, cansada de um dia na ribeira, com uma encomenda que tinha que fazer chegar ao destino, e agora via-se no risco de ver tudo cair por terra.
O desespero tomou-lhe conta do espírito, e em voz alta evocou um pedido: não haveria uma alma, mesmo que fosse do outro mundo, que a pudesse ajudar nesta aflição?
Assim aprendiam os vivos que, a despeito de todas as inúmeras dificuldades da vida, os mortos tinham a capacidade de ajudar os vivos, mas não a vontade. Nem gostavam de ser evocados.
No fim todos se encontrarão do outro lado, talvez com permissão para desculpas e entendimentos. Porque do lado de cá o tempo quase sempre parece demasiado curto para dizer e fazer tudo o que é necessário. Porque, a avaliar pelo recado recebido, as tarefas dos mortos devem ser diferentes das dos vivos. E poderia ser de outra forma?
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Em memória da avó Eva e do avô Luzia, que pouco conheci, por ter sido neto tardio. Pouco mais posso fazer do que tecer uma estória possível com os poucos fios que chegaram até mim.
Quim, esta eu fico a dever-te.
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