domingo, 14 de março de 2021

 

9 de janeiro de 2020 
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Público
A experiência é simples, e qualquer um de nós a fez em criança: observar um objecto através de um copo de água e perceber que isso distorce e retira nitidez às imagens. Se a água estiver em movimento a imagem irá ondular.
Esse mesmo fenómeno acontece com a atmosfera terrestre.
Feita de azoto, oxigénio e vestígios de outros gases, ainda de vapor e cristais de água, a atmosfera terrestre vibra e ondula, desviando os raios luminosos, absorvendo determinados comprimentos de onda e retirando nitidez às imagens. Qualquer astrónomo já observou esse fenómeno através de um telescópio e já desesperou por causa da distorção desses imagens dos objectos celestes, cuja nitidez é o objectivo primordial. Como não é possível estabilizar o ar atmosférico, permanentemente em movimento dada a energia solar, o vento, a orografia, ou a concentração de vapor de água, restava ao astrónomo esperar dias de atmosfera límpida e calma para proceder ao seu trabalho.
Na Terra já pouco se podia fazer para mitigar esse limite: espelhos cada vez maiores (na astronomia tamanho importa), telescópios no topo de montanhas, em locais desérticos, longe de poluição atmosférica e luminosa.
O grande avanço na Astronomia feita a partir do solo veio com a informática: os computadores permitiram limpar as imagens, e por fim medir em tempo real a distorção da atmosfera através de raios laser, e deformar a óptica dos espelhos para contrabalançar as distorções atmosféricas. A resolução obtida melhorou substancialmente a a partir dos anos 80 do século XX.
Ainda assim era e ainda é uma mitigação. Nunca conseguimos anular totalmente os efeitos da atmosfera.
O sonho de qualquer astrónomo era outro: poder observar acima da atmosfera, livre de qualquer interferência.
A exploração espacial veio finalmente proporcionar essa capacidade: no início dos anos 90 a NASA finalmente colocou um telescópio óptico no espaço. Chama-se Hubble, em honra de um grande astrónomo americano, e orbita a Terra a 400 Kms de altura. Finalmente íamos conseguir as tão ansiadas imagens, puras, capazes de suportar grandes ampliações sem perder a nitidez.
No entanto o Hubble foi inicialmente um enorme flop e uma decepção que custou biliões de dólares á NASA. Por incúria o seu espelho principal foi construído com um erro de curvatura, algo semelhante à miopia humana. As imagens reflectiam aberração esférica!
A NASA levou meses a assumir um erro absolutamente básico e crasso. Bastaria ter montado a óptica em terra e apontado a uma estrela, e logo a olho nu se teria percebido um erro tão grosseiro. Mas o facto é que o Hubble tem um espelho defeituoso. A NASA viu-se na contingência de ter que fazer uma pequena lente correctora, uns "óculos" para corrigir aquela "miopia". O Hubble dava-nos finalmente as imagens puras de que tanto ansiávamos. Mas nem tudo foi contado: o tal menisco corrector filtra alguma luz, e o Hubble perdeu uma magnitude de grandeza, o que equivale a não conseguir observar milhões de objectos. Entre o lançamento, a missão para corrigir a aberração do espelho principal e as missões de manutenção, a NASA já gastou milhares de milhões de dólares num aparelho que, apesar de magnífico, não deixa de ter um espelho com apenas 2,40 metros de diâmetro: um anão, comparado com os gigantescos espelhos em terra, com 8, 16 ou 30 metros de diâmetro! Não é nada consensual para a comunidade de astrónomos a importância deste aparelho. Muitos alegam que com o dinheiro gasto nele se teria feito muita e melhor Astronomia.
O Hubble vale pelo triunfo técnico, pela capacidade de vencer desafios, pela experiência para colocar e operar engenhos de grande complexidade no espaço. O seu sucessor, o James Webb, está prestes a ser lançado no próximo ano, depois de décadas de produção. É mais um péssimo exemplo de como não fazer um telescópio. Uma estória interminável com 20 anos!
Mas o Hubble ainda lá está, e produziu apesar de tudo muita e boa Astronomia. Em 1995 tirou uma fotografia iconográfica, símbolo do triunfo humano: chama-se "os pilares da criação". Imensas colunas de gás e poeiras, maternidades de estrelas que estão a nascer neste momento. Locais futuros para outras Terras, outros mundos, outros pontos azuis pálidos, mundos de água e de terra, temperaturas amenas, vida, luta, impérios e senhores, miséria e grandeza, num sopro futuro daquilo que hoje somos.
Fiquemos então com a poesia dos "pilares da criação"! Magnífico Cosmos. Estranha e assustadora criatura humana, criação e consciência desse Cosmos aqui no pequeno ponto azul claro, perdido algures num braço da espiral da via láctea, orbitando uma pequena mas segura estrela.

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