sábado, 27 de março de 2021
Caminho Leitoso
Cometa
A Ordem que Ecoa
Reinventar o Passado para Servir Agendas do Presente
Semente
Tropeço no Portugal Profundo
O Passado é Um País Remoto
As feiras medievais são recriações interessantes sobre um tempo remoto vivido pelos europeus: os mais desatentos poderão até acreditar que ficam com uma boa ideia acerca desse tempo. No entanto sabemos que a idade média foi um tempo sombrio, longo, muito diferente e quase impossível de recriar: basta pensar nas doenças, a peste, o controlo da Igreja, e sobretudo a alimentação: uma pessoa dessa época que caísse numa destas feiras ficaria no mínimo espantada: ela nunca viu abóboras, milho, tomate ou batatas, por exemplo. Tudo vindo das Américas, logo, desconhecido da Europa medieval. Recriar, reinventar e patrimonializar um tempo. Mas o passado é sempre um país distante.
Escrito nas Estrelas
World Wide Web
Beep, beep, beep...
Das Crenças
Religiões: a pedido de "algumas famílias". É assunto complexo e espinhoso que tenho evitado activamente.
Vamos antes de mais à definição que arranjei para religião: "a religião é um movimento identitário, de pertença a um grupo de crença, ou seja, um grupo que quer algo, necessariamente bom, melhor e oposto à realidade aflitiva de enorme sofrimento físico e espiritual em que todos existimos".
A religião é baseada em textos e preceitos de "inspiração divina", feita de textos "sagrados", "verdadeiros" (porque emanam de deus), escritos por profetas que se reconhecem a si mesmos como tal, e porque são reconhecidos pelo grupo, como alguém próximo do divino, ao contrário do comum dos mortais. A religião será pois a resposta social e grupal a perguntas que emanam da metafísica.
Sempre presente no espírito humano, a metafísica não tem outras resposta que não aquelas que encontramos dentro de cada um de nós. Ao nível do individuo a metafísica desagua na espiritualidade. Ao nível do grupo a espiritualidade individual de cada um é apropriada por supostas e entrepostas pessoas que se arvoram mais próximas do divino. Assim sendo, a religião é a apropriação da espiritualidade de cada individuo com fins de controlo social da reprodução (quem pode fazer filhos com quem) e da produção de bens (quem é dono do quê, quem pode dividir ou aglutinar meios de produção, como seja a terra ou a energia.
O preço a pagar pela necessária pertença ao grupo (o Homem é um ser social, só é homem no seio de outros homens) é a perda de autonomia, de independência da relação que cada um de nós necessariamente tem com a metafísica transformada em divino. Não é o foco desta publicação, mas é bem de ver, religiões não me assistem. Muitos desses supostos intermediários com o divino terão bem menos espiritualidade do que qualquer comum mortal, mas têm sim um enorme desejo de poder e de controlo social. Religião é grupo, espiritualidade é individuo. religião é moral, espiritualidade é ética, religião vem de fora, espiritualidade vem de dentro.
Religião não questiona escrituras, mestres ou profetas. Espiritualidade vive na dúvida. Religião dá certezas falsas. espiritualidade dá dúvidas saudáveis. Basta pensar no catolicismo: A Terra no centro, o homem feito à imagem e semelhança do seu único e verdadeiro deus. Quando a ciência finalmente se ergueu vimos Copérnico a retirar a Terra do centro levámos com a primeira machadada do nosso ego.
Não somos centro de nada, mas queremos desesperadamente ser. Mas ainda era-mos feitos à imagem e semelhança de deus. Darwin veio demonstrar a degradante condição humana, de sermos descendentes de um símio ancestral. Mais tarde o Iluminismo postulou o homem como ser racional, regido pelas regras da inteligência e da razão. Freud demonstrou que tal não é verdade e que o Ser humano se rege muito mais por impulso do que pela razão. "O ego não é rei na sua própria casa".
Aqui chegados temos uma visão de um mundo cheio de tecnologia, triunfos proporcionados pela ciência e a técnica, um bem-estar inimaginável para milhões de gerações antes de nós. E no entanto, não parece que sejamos hoje mais felizes do que as gerações que nos precederam. A solidão, a angústia, o medo, o caminho inexorável em direcção à morte não encontram conforto no oceano de tecnologia em que todos vivemos mergulhados. A estes juntam-se outros problemas. Na ordem do dia estão as questões ambientais e um planeta enxague e a necessitar de cuidados intensivos rápidos.
A um mundo complexo, vasto, assustador, onde impera a solidão digital e o egoísmo narcisico, encontramos respostas nos velhos demónios, disfarçados de deuses: é hoje inegável um movimento de retrocesso em direcção aos fundamentos das religiões, ou seja, aos fundamentalismos.
Um pouco por todo o mundo, do midwest americano, ao Brasil, até bastiões tradicionais dos Islão, as religiões estão de novo a ganhar força. Visões diferentes do mundo, ás vezes antagónicas, as religiões facilmente descambam no exacerbar das diferenças e no apelo a guerras "santas". Acontece que nenhuma guerra é santa. A lucidez e a coragem de enfrentar a dúvida, o medo, a diferença, são muito mais difíceis de suportar do que as certezas fantasiosas e delirantes, egóicas, oferecidas pela religião.
As religiões instituídas concentram muitas das energias que movem a humanidade. O desporto e a política são outras formas colectivas de controlo e canalização das forças que movem grupos, países, blocos! Neste regresso em força das religiões encontramos sempre os mesmo motores: o medo, o populismo básico, a demonização do "outro", um "nós" "puros", contra um "eles" "impuros". As identidades grupais constroem-se sempre entre um "nós" bons e um "eles" maus. A Europa tem um velho conflito latente entre a sua matriz cultural, e outra grande civilização nascida na margem sul do Mediterrâneo. construída sobre dois eixos fundamentais, a Europa tem em Atenas o foco da razão, da filosofia, da ciência, do Homem pelo Homem. Mas a Europa tem um segundo eixo de suporte: Jerusalém. Essa deu-nos a religião, a moralidade, os profetas, a santidade, a aversão judaica ao corpo e ao sexo. E no entanto a Europa singrou numa cultura que se tem construído sobre enorme violência, dentro das suas fronteiras e levada para fora delas, mas apesar disso um triunfo, das liberdades, do respeito, da figura "sagrada" do indivíduo, dos direitos do Homem. Na sua vertente religiosa a Europa bebe dos judaísmo através do Cristianismo. Religião erguida sobre o livro sagrado, a Bíblia é uma compilação de textos e de preceitos que leva milénios de construção.
Distintos entre si e muitas vezes até contrários, a bíblia tem duas divisões principais: o velho testamento, comum às 3 religiões abraamicas: Judaísmo, Islão e Cristianismo têm na figura de Abrão, e no deus único um denominador comum. O que temos assistido ao longo dos séculos é a oscilação das fronteiras entre cristandade e islamismo. Durante séculos o Islão subiu pelo sul da Europa, tendo ocupado por longos séculos a Península ibérica. Rechaçados paras as suas terras ancestrais, o Islão sempre sonhou com a reconquista do Al-andaluz, e a criação de um califado. Enquanto a Europa e a cristandade se abriam ao mundo, (a bíblia é o livro mais traduzido do mundo, existindo traduções em mais de 600 línguas), o Islão é fechado sobre si mesmo. No Islão não se promove a tradução das escrituras. O Alcorão deve ser lido na língua sagrada da revelação. O cristianismo passou além da leia da proporcionalidade ou lei de talião, "olho por olho, dente por dente". No cristianismo passou-se adiante: promove-se o perdão, o dar a outra face, o amor acima da justiça. O Islão permanece ainda demasiado agarrado à velha lei de talião.
Em muitos povos islâmicos a vingança é social e culturalmente aceite e bem-vista. Não quero fazer comparações entre profetas, não quero comparar Cristo com Maomé: mas sei a que matriz cultural pertenço. Aceito a cultura de outras civilizações, amo e respeito a humanidade no seu todo, mas conheço a escala de valores. Sou Europeu, de matriz cultural europeia, até cristã, livre, respeitadora de povos e de indivíduos. Não quero entrar nas velhas dinâmicas da lei da proporcionalidade, mas não ignoro a tensão entre cristandade e islamismo. Não ignoro que se permitam construções de templos diferentes, por exemplo mesquitas na Europa, quando é impossível construir igrejas na Arábia Saudita. Fechado sobre si próprio, o Islão não aceita nada menos do que a submissão: é isso que significa a palavra "Islão". Submissão total, incondicional ao seu profeta e ao seu deus "único".
Um não islâmico pode entrar na Arábia Saudita, mas não pode entrar em Meca ou em Medina. É por isso que reconheço superioridade ética à cultura de matriz europeia. Pessoas podem viver como querem, mas no respeito mútuo. A Europa demonstra superioridade quando aceita que se construam templos de diferentes religiões no seu espaço, quando o mundo Islâmico o combate ferozmente. Aceitar culturas é uma coisa, impor culturas é outra. ninguém está livre de responsabilidades históricas nesses processos, mas a Europa de hoje é muito mais tolerante e respeitadora do indivíduo do que outras confissões. A Europa há muitos anos separou religião do estado, no Islão essa divisão, tão necessária, ainda não aconteceu.
Seja bem-vindo quem vier por bem, mas no respeito fraterno e mútuo. Não vejo a humanidade num patamar capaz de rechaçar as religiões para os livros de História. A metafísica condena-nos à religião, pelo menos nos grandes números que definem povos. Estou disponível para aceitar tudo e todos, mas marco uma fronteira clara: a minha forma de pensar e de viver não é questionável. A minha crença ou falta dela é assunto exclusivamente meu, e ninguém tem o direito de se pronunciar sobre isso. O meu corpo é exclusivamente meu, e não legislável nem policiavel. O caminho é para a frente, não aceito retornos à idade média, ainda que a nadar em tecnologia.
Não reconheço santos nem profetas, nem sequer deuses "únicos" e "verdadeiros". Sagrada, só mesmo a liberdade que se vive no meu mundo. Aberto ao multi-culturalismo, mas não a colonialismos de qualquer ordem. Temos que manter a nossa forma de viver e de pensar, abertos ao mundo, mas não disponíveis para prescindir das conquistas que tantos nos custaram a obter. Penso que a Europa está a gerir a sua relação com outras culturas de forma inteligente.Tem que ser por aí, de outra forma seria o regresso às guerras santas, e essas não interessam a gente livre.
sexta-feira, 26 de março de 2021
Amianto
Há muitos anos que tenho a consciência dos perigos do amianto. Ainda ontem passei na seca do bacalhau em Alcochete, cujos telhados são maioritariamente desta matéria. Está velho e a decompor-se, o que significa que está na fase mais cancerígena da vida deste material. Não é muito grave naquele local desabitado. Não é grave respirar aquele ar por alguns minutos. Mas é grave e potencialmente mortal por cancro do pulmão para quem trabalha ou estuda em locais com amianto. Foram necessárias décadas para comprovar cientificamente aquilo que a simples estatística já dizia: o amianto causa cancro. A indústria de fabricação deste material resistente ao fogo e de grande durabilidade argumentava que sendo uma substância quimicamente inerte não havia perigo e não aceitavam que de facto o seu amianto fosse cancerígeno. Como sempre a indústria protege o seu lucro. Entretanto a ciência fez o seu caminho lento mas seguro: estudou a fundo os indícios seguros vindos da estatística. A resposta chegou tarde para muita gente, mas chegou a tempo de salvar muitas vidas. O amianto foi proibido em Portugal a partir de 2006. Mas porque é que o amianto causa um determinado tipo de cancro? A observação ao microscópio desta substância deu a resposta: este aglomerado de fibras ao envelhecer degrada-se e liberta nuvens de milhões de pequenas agulhas hipodérmicas. Quando inspiramos esta poeira ela vai picar a mucosa olfactiva e os alvéolos pulmonares. Esta agressão permanente obriga á activação dos mecanismos de renovação celular: os tecidos agredidos estão permanentemente a cicatrizar, num processo que se torna uma inflamação permanente. O que a biologia e a medicina provaram é que o despoletar permanente dos mecanismos de regeneração celular leva ao descontrolo dessa reprodução e ao cancro. Durante anos carreguei o peso de saber que o João Pedro frequentou a escola secundária D. Manuel II em Alcochete. Uma escola cheia de amianto. Não sendo pai, e não tendo voz activa gestão desta escola, pouco mais podia fazer do que ir às reuniões de pais e manifestar a minha preocupação. Numa dessas reuniões, ao questionar o director de turma acerca deste problema, um dos pais começou a rir. O problema não foi só o riso do labrego ignorante e atrevido. Ele também tinha lá o filho. O que me surpreendeu foi a ausência de tantos pais na reunião, e o silêncio despreocupado e indiferente dos poucos pais presentes. Houve uma única e honrosa excepção: a avó de uma menina que afirmou que a sua neta sofria de rinite e que o médico lhe tinha perguntado se havia amianto na escola. A senhora não sabia estabelecer a relação, mas quando me ouviu percebeu que realmente o amianto era perigoso. O João andou 3 anos nesta escola, e eu vou andar apreensivo por causa disso. A exposição ao amianto só se manifesta ao fim de 20 ou 30 anos. Parece que finalmente o país acordou para este problema. O amianto é mesmo para desaparecer de vez. Todos nós temos a obrigação de exigir que todo o amianto seja retirado dos nossos edifícios.
Natal
Lembro-me como se fosse ontem: a mãe tinha ido à feira do Bombarral. Nesse dia as figurinhas da sagrada família vieram com ela. O básico dos básicos. O menino Jesus, a virgem Maria e o São José.
Nesse Natal tudo o mais foi improvisado: a cabana, feita de pedaços de cortiça, o chão feito de musgo, e o meu encanto de menino, a mirar as figurinhas de barro pintado em tons coloridos. De um lado a Maria, do outro o José. Junto ao menino a mãe colocava a searinha do menino Jesus: um pires com terra onde se semeava um punhado de trigo tirado da arca.
Oferecíamos ao menino o pequeno sacrifício de alguns grãos, na esperança de que o menino Deus retribuísse esse sacrifício no próximo Verão com uma colheita que garantisse o pão nosso de cada dia. Oferecíamos também o sacrifício da chama sagrada, uma pequena candeia de azeite, que iluminava a sagrada família e aquecia o menino, essa mesma chama que também pode ser a das velas de cera, produzida pelas as laboriosas e preciosas abelhas. Porque aos santos, ao Divino e aos mortos não se deve oferecer outra luz e outro calor que não o do azeite ou da cera.
quinta-feira, 25 de março de 2021
Do Verniz, ou da Falta Dele
Há Vida Inteligente na Terra?
Saudade
- "Teixeira de Pascoaes, poeta, escritor, ensaísta, é também o chefe de fila de um movimento literário conhecido por “saudosismo” que se desenvolveu a partir de 1912, como um movimento artístico e literário de reacção contra o cosmopolitismo. Centrado na revista A Águia e caracterizado inicialmente por uma grande abrangência, o movimento liderado por Pascoaes insere-se no quadro mais geral das tendências nacionalistas que se desenvolviam na vida portuguesa desde os anos 90 do século XIX e que se acentuaram com a implantação da Rapública, encarada como uma ocasião única para a regeneração do país. Os principais objectivos do movimento eram devolver à cultura nacional e à vida portuguesa em geral a sua grandeza perdida, substituindo as influências estrangeiras – tidas como responsáveis pelo declínio do país desde os descobrimentos – pelo culto das coisas portuguesas, que reflectissem a alma nacional.
- É neste quadro genérico que Pascoaes irá propor a saudade como tema estruturador central do carácter nacional português. Não era esta a primeira vez que o tópico era tratado dessa maneira. Como de resto Pascoaes é o primeiro a lembrar, D. Duarte, Duarte Nunes de Leão, Luís de Camões, Rodrigues Lobo ou Almeida Garrett já tinham encarado a saudade como um motivo especificamente português. No final do século XIX, António nobre (1867-1900) tinha de novo colocado o tema da saudade na agenda poética e cultural portuguesa, estabelecendo um nexo entre a nostalgia da grandeza perdida e da pátria e nostalgia da felicidade da sua infância. Mas, independentemente deste desenvolvimentos anteriores, com Pascoaes era a primeira vez que alguém considerava a saudade não apenas como um tema especificamente português, mas como o tema português por excelência, no quadro de um empreendimento de cariz declarada e resolutamente nacionalista com prepercussões importantes na vida cultural portuguesa.
- Propondo a saudade com núcleo estruturador da alma portuguesa, Pascoaes irá reestruturar profundamente o modo como a temática da psicologia étnica portuguesa era até então vista. Assim, e em contraste com a dispersão até então prevalecente, parece gerar-se um consenso sobre a melhor maneira de caracterizar a psicologia étnica portuguesa. esta – na continuidade das propostas de teófilo Braga – deveria ser pensada, por um lado, ao nível dos sentimentos. E, por outro lado, deveria ser também vista – contra Adolfo Coelho e Rocha Peixoto – como um factor de hierarquização positiva do povo português.
- De facto, e em primeiro lugar, Pascoaes encarava a saudade como algo que definiria a especificidade da psicologia étnica portuguesa ao nível dos sentimentos e das emoções. No seguimento de Duarte Nunes de Leão e de Almeida Garrett, Pascoaes definiu a saudade como “o desejo do ser ou da coisa amada, em conjunto com a dor pela sua ausência. Desejo e dor confundem-se num só sentimento” que combina um elemento carnal ou material – o desejo – com um elemento espiritual – a dor – , uma orientação em direcção ao futuro – o desejo como esperança. a saudade seria nessa medida, de acordo com Pascoaes, um sentimento contraditório que ligaria universos tidos usualmente como separados, como o material e o espiritual, o passado e o presente.
- Definida desta forma, a saudade deveria ser considerada, em segundo lugar, não aopenas como a essência mesma da alma portuguesa, mas como um factor de hierarquização positiva da cultura nacional. De facto, a saudade seria o grande sentimento que se encontra por trás da grandeza de Portugal e dos principais acontecimentos que sucessivamente lhe deram expressão, como a fundação de Portugal por D.Afinso Henriques, a vitória de 1385 em Aljubarrota, os descobrimentos, o sebastianismo, a Restauração de 1640 ou a revolução republicana de 1910. Nessa exacta medida, restituir à saudade o seu lugar central na vida portuguesa seria equivalente a recuperar para Portugal a sua grandeza perdida.
- Produzida a partir do ensaísmo literário, a saudade de Pascoaes não releva entretanto exclusivamente de uma reflexão de matriz literária. A grande inovação que Pascoaes instroduziu no tratamento da saudade passa efectivamente pelo modo como ele elabora uma espécie de “etnografia espontânea” do tema, isto é, como produz em seu torno um conjunto de reflexões de forte orientação etnocultural em que conceitos e ideias sobre o povo, sobre raízes étnicas e sobre cultura ocupam um lugar relevante. Assim, a saudade poderia ser vista, antes do mais, como uma criação colectiva do povo português, enquanto entidade etnogenealogicamente concebida. a sua existência remontaria de facto ao tempo dos lusitano, vistos como o produto da combinação de um elemento ária – ou ariano – com um elemento semita. esta origem dual da cultura lusitana e, depois, portuguesa, expressar-se-ia de resto na própria concepção contraditória da saudade como dor e desejo. enquanto que a dor se ficaria a dever à influência semita, o desejo reflectiria o peso das raízes árias na formação étnica de Portugal.
- Simultaneamente, na argumentação do carácter português da saudade, Pascoaes recorreu abundantemente a factos extraídos do universo da cultura popular portuguesa. À semelhança de Teófilo Braga, concedeu grande importância à poesia popular portuguesa e, em particular, ao cancioneiro popular, encarando-o como “a obra mais representativa da raça” e como aquela onde melhor “transparece a fusão dos contrastes”. Rituais religiosos como a Encomendação das Almas, assim como outras expressões da religiosidade popular foram também utilizadas por Pascoaes como instâncias fundamentais de demonstração do carácter português da saudade.
- Como se sabe, a publicação das teses de Pascoaes suscitou uma polémica muito viva. Um dos adversários mais virulentos de Pascoaes foi António Sérgio (1883-1969). Defendendo enfaticamente um ponto de vista racionalista e anti-nacionalista acerca do tópico, Sérgio optou por centrar os seus ataques a Pascoaes em torno do carácter supostamente intraduzível da palavra saudade. De facto, segundo Pascoaes, o povo português seria:
- “o único povo que pode dizer que na sua língua existe uma palavra intraduzível nos outros idiomas, a qual encerra todo o sentido da sua alma colectiva (…) Sim: a palavra saudade é intraduzível. O único povo que sente a Saudade é o povo português (…). Os outros povos europeus sentem naturalmente uma espécie de saudade que em francês é souvenir, em espanhol recuerdo, etc. Mas este sofrimento, nesses Povos, não toma alma e o corpo que adquire no sentir português. Souvenir ou recuerdo são apenas um elementos da Saudade, cujo perfil é inconfundível. e por isso, ela se exteriorizou numa palavra que não tem equivalente noutras línguas”
- Para antónio Sérgio, pelo contrário, a palavra saudade não era de maneira nenhuma intraduzível:
- “muito ao contrário do que Pascoaes afirma, a palavra saudade é traduzível. Várias nações a representam por um termo especial: o galego tem soledades, soedades, saudades; o catalão anyoransa, anyoramento, o italiano desio, disio; o romeno, doru, ou dor; o sueco saknad; o dinamarquês, savn; e o islandês, saknaor…”
- Carolina Michaelis de Vasconcelos também não subscrevia as teses de Pascoaes sobre o carácter intraduzível da saudade, tentando igualmente – à semelhança de Sérgio – mostrar que um certo número de línguas europeias possuíam também equivalentes da saudade:
- “é inexacta a ideia que outras nações desconheçam esse sentimento. É ilusória a afirmação (já quatro vezes secular) que o mesmo vocábulo Saudade (…) não tenha equivalente em língua alguma do globo terráqueo e distinga unicamente a faixa atlântica, faltando mesmo na Galiza de além-Minho”
- Segundo Carolina Michaelis, saudade tinha de facto equivalente em quatro outras línguas da península ibérica: soledad ou soledades em castelhano, senhoredade no asturiano, morrinha no galego e anoryanza e anoryament no catalão. De resto, seria possível encontrar termos similares noutras línguas europeias: sehnsucht em alemão, längta em sueco. A particularidade da saudade residiria no seu uso mais frequente em português, por exemplo, durante os descobrimentos ou na literatura, e na importância da sua contribuição para a configuração da “alma portuguesa”.
- Apesar desta controvérsia, as ideias de Pascoaes receberam em geral um acolhimento bastante favorável. Como escreveu Óscar Lopes, “as principais ideias de Pascoaes estão em sintonia com a cultura portuguesa do seu tempo” e, entre as elites culturais portuguesas, a saudade torna-se num instrumento relativamente usado para falar nas especificidades do ser português. (…)"
-
- Leal, J. (2000). Etnografias Portuguesas (1870-1970) – Cultura Popular e Identidade Nacional. Ed: Publicações D.Quixote, Lisboa
segunda-feira, 22 de março de 2021
A Caixa das Jóias