sábado, 27 de março de 2021

Caminho Leitoso

Na vastidão do espaço, vazio pulvilhado por um ou outro grão de areia separado por anos-luz, a humanidade surgiu e cresceu. E apesar desta vastidão sem fim, o universo permanece mudo e quedo. Em concreto não há qualquer prova que outras estrelas alberguem irmãos feitos do mesmo pó, criado no coração de velhas estrelas mortas. Menos ainda encontramos o pai criador que não existe noutro local que no nosso desejo desesperado. Se algum facto se pode apontar á nossa espécie é a luta sem trégua pela nossa sobrevivência e crescimento, e a profunda solidão onde as respostas nunca chegaram de fora, e aquelas que encontramos vieram de dentro, de nós mesmos. A via láctea, as estrelas com os seus séquitos e o universo permanecem num silêncio altivo e indiferente. E no entanto sabemos que a despeito das distâncias proibitivas para a matéria, elas não o são nem para a luz nem para as ondas. Mas as estrelas, essas permanecem em silêncio obstinado. Nada mais possuímos além desse silêncio, e de uma força estranha e invisível que nos impele a seguir em frente. Milhões de anos em que a matéria se criou, se complexificou, se tornou casa da vida e da consciência, aparentemente as coisas mais preciosas que o universo cria. Porque quando abrimos os olhos e questionamos o que nos é dado ver, é o universo ele mesmo que toma consciência de si. Universo que sente a sua própria solidão. E as galáxias vão girando numa sinfonia louca mas cheia de coerência, estrelas, galáxias, átomos, kuarks dançando no universo que se expande em velocidade acelerada, onde estrelas nascem e morrem queimando matéria, em direcção a um futuro onde só restará vazio e um número infindável de buracos negros. Depois, talvez Lord Shiva queira de novo retomar o ciclo. Talvez no final da vastidão e do vazio lhe apeteça dizer : "faça-se luz". E a luz, os átomos primordiais de Hidrogénio voltem a surgir. Afinal o deus carrega o círculo de fogo entre as mãos, enquanto vai dançando ao som da música eterna do ciclo e criação e destruição. Por um piscar de olhos presenciamos a dança do deus, fazemos parte do bailado. Fiat Lux! 

Cometa

São belos e potencialmente perigosos: bolas de matéria gelada, entre elas água, amónia, metano, e matéria semelhante aos torrões terrestres. Já contei uns 15. 
 
Sempre que um aparecia era o entusiasmo: seria o mais brilhante, o mais espectacular. Quase nunca se concretizava. Quando chegam perto da órbita de Marte os gelos começam a ferver e a sublimar, criando uma cabeleira, e uma ou duas caudas. Ninguém sabe porque é que estes objectos longínquos de vez em quando são atirados para o interior do sistema solar, criando espectáculos celestes que durante milhares de anos causavam medo. Afinal acontecem na esfera celeste, onde tudo seria perfeito e imutável (por contraponto á Terra, sempre em mudança e sujeita a corrupção). E no entanto de vez em quando lá vinha um cometa para questionar o saber antigo. A cabeleira de poeiras e de vapor pode ser gigantesca, do tamanho de um planeta. Um núcleo cometário de poucos quilómetros pode criar um fenómeno maior que um planeta; é que além da cabeleira um cometa pode desenvolver uma ou duas caudas. Uma curvilínea, feita de material electricamente neutro e que corresponde ao caminho que o cometa faz. A outra é a cauda iónica: essa é reta, feita de material ionizado que o vento solar empurra para trás. Uma cauda cometária pode atingir milhões de quilómetros. Por exemplo, ir da órbita terrestre á órbita de Marte! Trata-se pois de um espectáculo cósmico digno de ser visto, e eu já tive o privilégio de ver muitos. Um deles foi este: o Hale-Bopp (normalmente recebem o nome do ou dos descobridores). Passou em 1997 e era facilmente visível à vista desarmada.
Até as duas caudas eram observáveis sem recurso a binóculos ou a telescópio! Belo e assustador. Não pelos motivos que os antigos acreditavam, mas porque um dia poderão colidir com a Terra. As chuvas de meteoros que acontecem durante o ano estão associadas a esses objectos. Trata-se de poeiras que ficaram em suspensão no espaço, cruzam a órbita terrestre e caem na nossa atmosfera onde ardem, fazendo um fogo de artifício natural.

A Ordem que Ecoa

 

Depois de uma conversa muito interessante quis rever algumas matérias sobre uma ordem e um tempo que pouco conheço. Nada me interessam as fantasias criadas à volta dos Templários, que duraram apenas dois séculos mas que acumularam uma enorme riqueza e prestígio, mas sobram dúvidas que merecem ser investigadas.
O destino da frota fugida de França após a perseguição e morte de quase todos os templários franceses é um mistério fascinante. A criação de uma frota pelo rei D. Dinis logo de seguida e a hábil manobra de não acatar a ordem papal de extinção dos templários, tendo simplesmente mudado o nome para Ordem de Cristo, o posterior desenvolvimento expansão de Portugal, tudo merece ser estudado e investigado. No Verão passado estive na Atouguia da baleia e no pórtico da igreja matriz, muito carcomida pelo tempo, lá está a cruz de Cristo. Há na região Oeste vários outros elementos referentes a esta ordem religiosa, e uma hipótese remota de que a frota fugida e o seu tesouro residam algures na zona. Mais tarde as caravelas e as naus adoptaram a cruz de Cristo, exibida até hoje no navio-escola Sagres.

Reinventar o Passado para Servir Agendas do Presente

Chamava-se Fernão de Magalhães, era português e navegador. Ofereceu os seus préstimos ao rei D. Manuel I para efectuar uma viagem às Índias orientais. Recebeu um não do rei português e por isso foi para Espanha, que o financiou. Em 1519 parte de San Lucar de barrameda para fazer a primeira circum-navegação do globo terrestre. Aquilo que físicos, astrónomos e matemáticos já tinham demonstrado, Magalhães provou-o. Na verdade morreu nas Filipinas, mas a nau Vitória haveria de regressar a Espanha, comandada por um espanhol. A viagem de descoberta teve um preço elevado, mas o ganho em conhecimento foi imenso. Ao fim de 500 anos Portugal e Espanha decidem comemorar o evento, e de Espanha vem uma reacção da direita nacionalista reclamando o feito apenas para Espanha. 500 anos depois um evento desta natureza ainda serve de arma política. Não me surpreende. Evocar feitos e heróis do passado, reais ou imaginários é muito recorrente e serve propósitos identitários fortes. Mas na viagem de Magalhães não há dúvidas. Todos sabem que ele era português, mas foi ao serviço de Espanha que a viagem foi feita. Faz todo o sentido que seja uma comemoração conjunta. Magalhães fiou na história. Há pinguins com o seu nome. Na terra do fogo há um estreito com o seu nome. Duas galáxias-satélites da via láctea têm o seu nome: a grande nuvem de Magalhães e a pequena nuvem de Magalhães. Há crateras na lua e em Marte com o seu nome. Ele tem um lugar na história que é inquestionável. Já a reacção do nacionalismo de Castela é lamentavel. Mas nada de novo vindo do outro lado da fronteira. As nações que a compõem e que apostam na independência deixam o centralismo madrileno nervoso. Acima disso tudo Magalhães brilha pela eternidade. O rio do esquecimento não lhe assiste.

 

Semente


Passou cedo o sol
A chuva ageste também
Força bruta
Flor breve, na terra fenece
Sem tempo, sem saber
Apenas veio para ser semente
Vastidão de tempo lesto
Esfinge voraz
Onde tudo acontece e nada passa
Mas a terra é quente
E a chuva doce
Nada mais és do que semente
Sabes, as sementes não colhem, dão colheita
Terra quente, chuva doce
Sedução secreta
Semente discreta
Em ti a eternidade.
Copyright
Sérgio Caldeira

 

Tropeço no Portugal Profundo

 Vamos por partes: o quadro do Caravaggio é só ilustrativo. Dizem as estatísticas desapiedadas do mundo virtual que quando só há texto quase ninguém lê. O retrato ajudará a amenizar o relato. Por outro lado, em se tratando de crenças e mais ainda de gente viva, esta estória, que merece ser contada, exige "luvas de pelica" e como tal não citarei nomes nem colocarei imagens, que também circulam pelo ciberespaço. É desse contraste profundo entre uma contemporanedade feita de tecnologia do imediato, em em oposição com um tempo remoto e profundo, que podem os mais desavisados pensar estar enterrado na poeira dos séculos, que se tece esta narrativa no mínimo estranha.

Saio da grande Lisboa para uma Páscoa em família. O destino é o centro geodésico de Portugal continental, ali para os lados de Vila de Rei. À volta do núcleo familiar e da refeição pascal juntam-se outros amigos em amena confraternização.


É de uma dessas amigas que surge então a tal estória. Não se trata de gente particularmente velha, e não sendo muito letrada, também não é analfabeta. Seria de supor que o acesso à leitura quebrasse amarras com esse tempo longo e antigo de analfabetismo, medo e superstições. Não é o caso.
O caso é que existe em Portugal uma prática de muitas décadas que consiste em juntar grupos de pessoas em autocarros e levá-las em excursões por locais do país considerados de interesse. Santuários ou monumentos naturais, como sejam Fátima, Batalha, grutas da serra D'Aire são comuns. Mas há outros roteiros, naturalmente ajustados pelas empresas de autocarros à população alvo. Por 25€, mais o valor de uma refeição, para quem não quer levar marmita, lá se angariam umas dezenas de turistas.
É num desses circuitos de turismo religioso que se fala de algo extraordinário: uma santinha viva. Ali para os lados de Aveiro em pleno século XXI, há uma terra onde vive uma mulher santa: acamada desde jovem, foi no dia da sua primeira comunhão que terá caído à cama. O milagre é que desde esse dia, não come nem bebe. Assim mesmo a apresenta a mãe aos romeiros que vão aos bandos em busca de santidade e pureza. Os horários são restritos: a santinha, deitada no seu leito, só recebe visitas das 9h às 11h. Não adianta ir lá antes ou depois das horas estipuladas. Com um crucifixo nas mãos, e com tantos romeiros que se perfilam no seu quarto, a santinha não se dirige a ninguém em particular. Apenas move os olhos enquanto vai dizendo "tenham fé, tenham muita fé". Um ou outro romeiro mais afoito, por simples atrevimento, ou porque alguma maleita o atormenta, lá consegue trocar umas palavras. "Não tenhas medo, isso que aí tens não é nada de ruim". Diz a um deles. Os romeiros vão passando e deixando a esmola em dinheiro na cama da santinha.
Façamos as contas: um autocarro de turismo leva à volta de 50 romeiros. Se a esmola for apenas um euro por pessoa, e tendo em conta ainda que só nesse dia havia quatro autocarros parados à porta da santinha, é fácil fazer as contas!
Com objectivo de obter o máximo de informação possível desta estória de um Portugal profundo que subsiste, socorro-me das ferramentas habituais do trabalho de campo: a ingenuidade, "então conte lá"! "A sério, tantos anos só com a Óstia sagrada?". E o novelo lá vai sendo desfiado.
A santinha recebe a vista do pároco da freguesia, legitimando de certa forma a prática, e a estória já leva mais de 40 anos. A jovem sofre e epilepsia severa que a limita e impede de levar uma vida normal. A mãe gere a vida da família e em particular a vida da filha. Pergunto ingenuamente: mas se ela não come nem bebe há tantos anos deve estar muito magrinha! - não, por acaso não está".
A estória da santinha que vive ali para os lados der Aveiro circula na internet. Já meteu tribunal, onde se ponderou tirar a custódia da doente à mãe. O tribunal assim não o entendeu. A Igreja também não repudia, a avaliar pela visita regular do padre, que leva à santinha a sagrada comunhão.

É desta forma se alimenta um Portugal medieval que subsiste até hoje. Não foi só o Estado Novo que manteve os seus mendigos santificados. Seja por ingenuidade, pela força da crença, pela ignorância ou pelo medo, o facto é que o circuito de santos e santinhas subsiste num país onde supostamente a contemporaneidade já teria apagado esses resquícios de medievalismo. Mas basta sair da cidade grande para perceber que não é assim.

O Passado é Um País Remoto



 As feiras medievais são recriações interessantes sobre um tempo remoto vivido pelos europeus: os mais desatentos poderão até acreditar que ficam com uma boa ideia acerca desse tempo. No entanto sabemos que a idade média foi um tempo sombrio, longo, muito diferente e quase impossível de recriar: basta pensar nas doenças, a peste, o controlo da Igreja, e sobretudo a alimentação: uma pessoa dessa época que caísse numa destas feiras ficaria no mínimo espantada: ela nunca viu abóboras, milho, tomate ou batatas, por exemplo. Tudo vindo das Américas, logo, desconhecido da Europa medieval. Recriar, reinventar e patrimonializar um tempo. Mas o passado é sempre um país distante.

Escrito nas Estrelas

 

Olho de relance o telescópio. Engenho magnífico de vidros espelhados, tubos e madeira. Objecto semi-tosco, com a pintura maltratada, a destoar na sala nova, inestético, como me disse um outro amigo um dia. Objecto de evasão, gozo de ter saído das nossas mãos, e não de uma loja qualquer, pronto a usar. Ando há anos a ganhar coragem para o pintar de novo. 
De esmalte branco, como me ensinaste um dia, porque é a cor que melhor reflecte a luz solar, para que a óptica não aqueça, deformando-se e inviabilizando as imagens do cosmos, que queríamos tão nítidas quanto possível. Sabes, apenas alguns amigos mais chegados - para além da família próxima, é claro - sabem que o mérito deste objecto que não perdeu aura de fantástico, apesar dos mais de 20 anos passados, não é apenas meu, mas também muito teu. Tinhas já feito o teu próprio telescópio, seguindo a "bíblia" do também saudoso Mestre.
 Espelho esférico, bastante mais fácil de fazer. Quiseste inovar, e um ano depois de andarmos a cortar vidro, as esmerilar vidro, a polir vidro, decidiste que o meu telescópio seria melhor. Eu teria ficado pela esférica. Tu insististe, e partimos para a parábola. Horas infindáveis, noites a fio na APAA a medir e a corrigir a curvatura do espelho com o auxílio do aparelho de Foucault. Esperas intermináveis para que o calor das mãos passado para o vidro se dissipasse, que o comboio passasse por baixo dos nossos pés pelo túnel do Rossio, que os eléctricos acalmassem a sua correria na rua, para que o edifício não trepidasse, para que a temperatura estabilizasse, e para que as medidas fossem fiéis. E foram. 1/27 de onda, reduzido para 1/20 de onda após a aluminização! Um ano depois, e o magnífico aparelho estava a funcionar. Lembro o primeiro espelho secundário que não tinha qualidade suficiente, o aborrecimento de não ter ainda um buscador, para arrelia nossa. Na varanda da tua casa, com um Júpiter a faiscar no céu, e nós nem sequer conseguíamos apontar-lhe a máquina! Mas enfim, retocámos o que faltava. 
Depois disso foram anos de pura evasão. Tempos depois, resolvias partir para outras vivências. O tempo passa, o corpo transforma-se, os sonhos e as urgências tornam-se outros. Pena que às vezes se transformem em pesadelos. Sabes, Camacho (agora já te posso chamar assim, sabes que é apenas uma provocação, os amigos próximos sabiam que detestavas ser chamado assim), às vezes os amigos mais próximos preocupavam-se contigo. Um dia, no observatório do Mestre, este confidenciou-me algumas preocupações acerca de ti. Porque nós gostávamos mesmo de ti. Tinhas uma alma linda, num corpo que não parecia obedecer à ditadura moderna de beleza. Não que fosses um homem feio, mas também não eras bonito. Tinhas passado nas Amoreiras, "catrapiscaste" uma miúda gira de uma loja, que não te ligou nenhuma. Como querias ter a atenção dela a todo o custo, resolveste simular um roubo de caixa. Logo tu, que nem um chupa roubavas em miúdo, que nunca roubaste nada a ninguém. A miúda a accionar o alarme, os "gorilas" a aparecerem, a "convidarem-te" para os acompanhares, e tu, com alma de cordeirinho, a fingir-te de lobo, lá vais. O resultado só podia ser um: a valente tareia que apanhaste! Apesar do enorme respeito que a figura do nosso Mestre nos impunha, não consegui conter o riso. Só se perdeu alguma que tenha caído no chão. Até o mestre se riu comigo. Confidenciou-me então que às vezes tinhas atitudes pouco convencionais. O teu herói lá do bairro era um "acelera" que andava de moto a aterrorizar o bairro. Algum tempo depois começas a dar aulas no secundário. Resolves fazer um teste aos miúdos, para de seguida, no fim da aula, os obrigares a pôr amarfanhados no cesto do lixo! Nesse mesmo ano, no Carnaval, resolves ir dar aulas de peruca amarela!
Perdemos-te o rasto. Tempos depois um outro amigo confidencia-nos que tinhas conhecido uma... como chamar-lhe? Mulher? Uma infeliz, viciada em drogas duras. Partes para a aventura e para a espiral. Perdes o emprego de professor, és posto fora de casa pela mãe, começas a mendigar. Tu, com um curso superior, com uma possibilidade de emprego, não conseguiste resistir aos encantos femininos. Encontro-te um dia à porta da "Versalhes" a pedir. Quando te digo que não precisas de pedir, respondes-me que não pedes, andas antes a "cravar otários"! Fico a remoer, incapaz de responder a um amigo que decidira dar-se a perder. Tempos depois volto a encontrar-te de novo no metro das Picoas, a "cravar". Arrelio-me contigo. Digo-te que o que falta é um pai mais próximo, que te dê uma tareia daquelas de partir um ou dois ossos. Os burros - digo-te - quando são geniosos, põe-se-lhes um freio nos dentes e faz-se-lhes a muda a puxar. - Não, isso não, dizes tu -, e continuas a "cravar". Sabes, ainda hoje me questiono se não te teria feito um favor em dar-te uns valentes murros, já que o pai continuava a exercer a profissão de cirurgião cardíaco lá longe, e não te deitava a mão. Talvez ainda hoje estivesses connosco, a rir dos tempos de juventude. Tu preferiste a espiral. A "menina", como tu começaste a referir-te à tua companheira, estava seropositiva. Nasce uma criança dessa união de loucos, e nasce seropositiva. Não sei se ela ainda existe. Nunca cheguei a perceber se apenas nasceu com anti-corpos ao HIV ou se nasceu já contaminada. Perdes a custódia da criança. A companheira morre (de overdose, de SIDA?). Dizes-me mais tarde que não te contaminou, nem te passou o vicio da heroína. Não me convences. Muitos anos depois sei que de facto passaste a consumir. Tentas-te recompor a tua vida, voltas a dar aulas. Há uns anos um amigo dos "tempos das estrelas" liga-me da Suíça. O nosso Camacho estava morto. Apareceu dentro de um poço, semi-nu, afogado. Fico aturdido, incrédulo. Nunca cheguei a saber o que se passou. Nenhum de nós. No meu espírito fica a convicção de contas de drogas não resolvidas. Pagaste a loucura com a vida, não creio que tenha sido suicídio, vivo na convicção o homicídio. Poucos anos depois o frágil coração do nosso Mestre resolve parar. A colecção dos meus mortos vai crescendo. Inaugurada pela mãe, quando eu tinha 17 anos, vai aumentando inexoravelmente. E sabes Camacho, que eu não quero pintar de novo o telescópio, porque aquela foi a nossa pintura, porque as marcas das tuas mãos estão lá, embora apenas eu as possa decifrar. Pintar de novo o aparelho seria apagar as memórias que o objecto transporta consigo. E eu não quero apagar a tua memória.

World Wide Web

Um argumento típico nas discussões de Facebook é o da fragilidade do conhecimento por ser obtido na internet. Sejamos claros: sim, a internet é uma imensa lixeira. Mas as pérolas também lá estão.
E não, o meu conhecimento não se baseia exclusivamente no Google. Estudo desde sempre, e fui construindo o meu percurso académico sempre em segundo plano. Colocar comida no prato sempre foi prioritário. Comecei a trabalhar com 7 anos. Um rebanho de ovelhas ocupava grande parte da minha infância. E quando não era o rebanho, era o cultivo da terra. Foi sempre assim, lutar pela sobrevivência.

Universidade só aos 40 anos, e o quanto eu gostei do curso. Importa pois dizer que o meu conhecimento vai muito além dos doutoramentos "à lá minute" do dr. Google. Livros em papel sempre fizeram parte do meu mundo. E quando o pai me proibiu de ler, porque não dava atenção ao rebanho que no fim do dia regressava galgo, de barriga vazia, aprendi a esconder os livros entalados no cinto, junto às barriga e escondidos debaixo da camisola. Por pouco escapei de apanhar por insistir nas leituras. Pobre pai, bom coração, mas analfabeto: sabia lá ele o que eram livros ou para que serviam? Ali o que importava eram as ovelhas, o trigo, as batatas, a vinha ou os animais para abate.
Sim, hoje poucos livros de papel me passam pelas mãos. Hoje os livros migraram para a internet. Mas felizmente sei usar as ferramentas. 30 anos de informática deram traquejo para conseguir leituras de qualidade. Raramente me deixo apanhar por literatura de má qualidade, ou pior, por falsa informação. Gosto de ler os nomes dos endereços de internet. Gosto de saber o que vem depois do ponto, e que por norma indica o país de origem. Gosto de saber qual foi a instituição ou pessoa que escreveu o texto. Gosto de ver os logotipos e procuro saber quem está por detrás. Não, o meu conhecimento não vem apenas da internet, e quando vem sei procurar informação fidedigna. É este o motivo pelo qual não me deixo abater por tal argumento. Sou ecologista desde que me conheço. Sempre defendi a biodiversidade, num tempo e numa cultura que via os pardais como inimigos, porque comiam o trigo na fase das sementeiras e na fase das colheitas.
Eram apanhados aos milhares com uma pressão de ar e comidos. As águias de asa redonda eram abatidas a tiro, porque competiam com os caçadores por causa dos coelhos. Eram assim o Portugal dos anos 70 e 80. Hoje é muito diferente, e nem sempre para melhor. Não sou ecologista de aviário nem despertei para a ecologia agora. É uma vida de luta.
A internet é boa ou é má? Nem uma nem outra. É um espelho daquilo que lá é colocado. Temos é que saber ser criteriosos na sua utilização. Por isto o argumento da internet não cola. Ela é suficientemente vasta para que eu possa escolher a minha internet. Regra geral é fácil distinguir o trigo do joio.
Às vezes é difícil, a desinformação vem de forma subtil e disfarçada e dá trabalho perceber o real interesse dos textos e de quem os pública. Mas não estou desarmado.

Beep, beep, beep...

Bep, beep, beep... Conheci há muito tempo um senhor que fez engenharia no IST. Era um dos moços que ligavam para casa do professor e gozavam com ele por ter afirmado que era impossível os russos terem posto um satélite em órbita! Ele tinha feito as contas e um foguete não conseguiria velocidade horizontal suficiente para entrar em órbita. O que ele ignorava na altura era a existência de foguetes de andares. Pobre homem, foi alvo de chacota em Portugal e ícone de um país atrasado, como era de facto na altura.
Esta estória foi muito badalada na altura. Coitado do professor. Nos anos 90, após a queda da URSS veio a Lisboa a sociedade Lavoskin, responsável por muitos projectos espaciais da URSS. Esteve em exposição no CCB. Logo na entrada estava uma cópia do Sputnik 1. Uma bola de aço com antenas, uma bateria de chumbo e um rádio-transmissor. Foi um enorme golpe publicitário, fruto da guerra fria. Mas plenamente conseguido. Conseguiu pôr o ocidente nervoso. No entanto não fez ciência. Ao contrário, o minúsculo e posterior Exporer 1 levava a bordo um magnetómetro, e com ele o Van Allen descobriu as cinturas de radiação da terra, hoje com o seu nome. A "laranja' americana podia ser minúscula, ao lado do Sputnik. Mas fez ciência!


 

Das Crenças

 

Religiões: a pedido de "algumas famílias". É assunto complexo e espinhoso que tenho evitado activamente.
Vamos antes de mais à definição que arranjei para religião: "a religião é um movimento identitário, de pertença a um grupo de crença, ou seja, um grupo que quer algo, necessariamente bom, melhor e oposto à realidade aflitiva de enorme sofrimento físico e espiritual em que todos existimos".

A religião é baseada em textos e preceitos de "inspiração divina", feita de textos "sagrados", "verdadeiros" (porque emanam de deus), escritos por profetas que se reconhecem a si mesmos como tal, e porque são reconhecidos pelo grupo, como alguém próximo do divino, ao contrário do comum dos mortais. A religião será pois a resposta social e grupal a perguntas que emanam da metafísica.

Sempre presente no espírito humano, a metafísica não tem outras resposta que não aquelas que encontramos dentro de cada um de nós. Ao nível do individuo a metafísica desagua na espiritualidade. Ao nível do grupo a espiritualidade individual de cada um é apropriada por supostas e entrepostas pessoas que se arvoram mais próximas do divino. Assim sendo, a religião é a apropriação da espiritualidade de cada individuo com fins de controlo social da reprodução (quem pode fazer filhos com quem) e da produção de bens (quem é dono do quê, quem pode dividir ou aglutinar meios de produção, como seja a terra ou a energia.

O preço a pagar pela necessária pertença ao grupo (o Homem é um ser social, só é homem no seio de outros homens) é a perda de autonomia, de independência da relação que cada um de nós necessariamente tem com a metafísica transformada em divino. Não é o foco desta publicação, mas é bem de ver, religiões não me assistem. Muitos desses supostos intermediários com o divino terão bem menos espiritualidade do que qualquer comum mortal, mas têm sim um enorme desejo de poder e de controlo social. Religião é grupo, espiritualidade é individuo. religião é moral, espiritualidade é ética, religião vem de fora, espiritualidade vem de dentro.

Religião não questiona escrituras, mestres ou profetas. Espiritualidade vive na dúvida. Religião dá certezas falsas. espiritualidade dá dúvidas saudáveis. Basta pensar no catolicismo: A Terra no centro, o homem feito à imagem e semelhança do seu único e verdadeiro deus. Quando a ciência finalmente se ergueu vimos Copérnico a retirar a Terra do centro levámos com a primeira machadada do nosso ego.

Não somos centro de nada, mas queremos desesperadamente ser. Mas ainda era-mos feitos à imagem e semelhança de deus. Darwin veio demonstrar a degradante condição humana, de sermos descendentes de um símio ancestral. Mais tarde o Iluminismo postulou o homem como ser racional, regido pelas regras da inteligência e da razão. Freud demonstrou que tal não é verdade e que o Ser humano se rege muito mais por impulso do que pela razão. "O ego não é rei na sua própria casa".

Aqui chegados temos uma visão de um mundo cheio de tecnologia, triunfos proporcionados pela ciência e a técnica, um bem-estar inimaginável para milhões de gerações antes de nós. E no entanto, não parece que sejamos hoje mais felizes do que as gerações que nos precederam. A solidão, a angústia, o medo, o caminho inexorável em direcção à morte não encontram conforto no oceano de tecnologia em que todos vivemos mergulhados. A estes juntam-se outros problemas. Na ordem do dia estão as questões ambientais e um planeta enxague e a necessitar de cuidados intensivos rápidos.

A um mundo complexo, vasto, assustador, onde impera a solidão digital e o egoísmo narcisico, encontramos respostas nos velhos demónios, disfarçados de deuses: é hoje inegável um movimento de retrocesso em direcção aos fundamentos das religiões, ou seja, aos fundamentalismos.

Um pouco por todo o mundo, do midwest americano, ao Brasil, até bastiões tradicionais dos Islão, as religiões estão de novo a ganhar força. Visões diferentes do mundo, ás vezes antagónicas, as religiões facilmente descambam no exacerbar das diferenças e no apelo a guerras "santas". Acontece que nenhuma guerra é santa. A lucidez e a coragem de enfrentar a dúvida, o medo, a diferença, são muito mais difíceis de suportar do que as certezas fantasiosas e delirantes, egóicas, oferecidas pela religião.

As religiões instituídas concentram muitas das energias que movem a humanidade. O desporto e a política são outras formas colectivas de controlo e canalização das forças que movem grupos, países, blocos! Neste regresso em força das religiões encontramos sempre os mesmo motores: o medo, o populismo básico, a demonização do "outro", um "nós" "puros", contra um "eles" "impuros". As identidades grupais constroem-se sempre entre um "nós" bons e um "eles" maus. A Europa tem um velho conflito latente entre a sua matriz cultural, e outra grande civilização nascida na margem sul do Mediterrâneo. construída sobre dois eixos fundamentais, a Europa tem em Atenas o foco da razão, da filosofia, da ciência, do Homem pelo Homem. Mas a Europa tem um segundo eixo de suporte: Jerusalém. Essa deu-nos a religião, a moralidade, os profetas, a santidade, a aversão judaica ao corpo e ao sexo. E no entanto a Europa singrou numa cultura que se tem construído sobre enorme violência, dentro das suas fronteiras e levada para fora delas, mas apesar disso um triunfo, das liberdades, do respeito, da figura "sagrada" do indivíduo, dos direitos do Homem. Na sua vertente religiosa a Europa bebe dos judaísmo através do Cristianismo. Religião erguida sobre o livro sagrado, a Bíblia é uma compilação de textos e de preceitos que leva milénios de construção.

Distintos entre si e muitas vezes até contrários, a bíblia tem duas divisões principais: o velho testamento, comum às 3 religiões abraamicas: Judaísmo, Islão e Cristianismo têm na figura de Abrão, e no deus único um denominador comum. O que temos assistido ao longo dos séculos é a oscilação das fronteiras entre cristandade e islamismo. Durante séculos o Islão subiu pelo sul da Europa, tendo ocupado por longos séculos a Península ibérica. Rechaçados paras as suas terras ancestrais, o Islão sempre sonhou com a reconquista do Al-andaluz, e a criação de um califado. Enquanto a Europa e a cristandade se abriam ao mundo, (a bíblia é o livro mais traduzido do mundo, existindo traduções em mais de 600 línguas), o Islão é fechado sobre si mesmo. No Islão não se promove a tradução das escrituras. O Alcorão deve ser lido na língua sagrada da revelação. O cristianismo passou além da leia da proporcionalidade ou lei de talião, "olho por olho, dente por dente". No cristianismo passou-se adiante: promove-se o perdão, o dar a outra face, o amor acima da justiça. O Islão permanece ainda demasiado agarrado à velha lei de talião.

Em muitos povos islâmicos a vingança é social e culturalmente aceite e bem-vista. Não quero fazer comparações entre profetas, não quero comparar Cristo com Maomé: mas sei a que matriz cultural pertenço. Aceito a cultura de outras civilizações, amo e respeito a humanidade no seu todo, mas conheço a escala de valores. Sou Europeu, de matriz cultural europeia, até cristã, livre, respeitadora de povos e de indivíduos. Não quero entrar nas velhas dinâmicas da lei da proporcionalidade, mas não ignoro a tensão entre cristandade e islamismo. Não ignoro que se permitam construções de templos diferentes, por exemplo mesquitas na Europa, quando é impossível construir igrejas na Arábia Saudita. Fechado sobre si próprio, o Islão não aceita nada menos do que a submissão: é isso que significa a palavra "Islão". Submissão total, incondicional ao seu profeta e ao seu deus "único".

Um não islâmico pode entrar na Arábia Saudita, mas não pode entrar em Meca ou em Medina. É por isso que reconheço superioridade ética à cultura de matriz europeia. Pessoas podem viver como querem, mas no respeito mútuo. A Europa demonstra superioridade quando aceita que se construam templos de diferentes religiões no seu espaço, quando o mundo Islâmico o combate ferozmente. Aceitar culturas é uma coisa, impor culturas é outra. ninguém está livre de responsabilidades históricas nesses processos, mas a Europa de hoje é muito mais tolerante e respeitadora do indivíduo do que outras confissões. A Europa há muitos anos separou religião do estado, no Islão essa divisão, tão necessária, ainda não aconteceu.

Seja bem-vindo quem vier por bem, mas no respeito fraterno e mútuo. Não vejo a humanidade num patamar capaz de rechaçar as religiões para os livros de História. A metafísica condena-nos à religião, pelo menos nos grandes números que definem povos. Estou disponível para aceitar tudo e todos, mas marco uma fronteira clara: a minha forma de pensar e de viver não é questionável. A minha crença ou falta dela é assunto exclusivamente meu, e ninguém tem o direito de se pronunciar sobre isso. O meu corpo é exclusivamente meu, e não legislável nem policiavel. O caminho é para a frente, não aceito retornos à idade média, ainda que a nadar em tecnologia.

Não reconheço santos nem profetas, nem sequer deuses "únicos" e "verdadeiros". Sagrada, só mesmo a liberdade que se vive no meu mundo. Aberto ao multi-culturalismo, mas não a colonialismos de qualquer ordem. Temos que manter a nossa forma de viver e de pensar, abertos ao mundo, mas não disponíveis para prescindir das conquistas que tantos nos custaram a obter. Penso que a Europa está a gerir a sua relação com outras culturas de forma inteligente.Tem que ser por aí, de outra forma seria o regresso às guerras santas, e essas não interessam a gente livre.

sexta-feira, 26 de março de 2021

Amianto

 Há muitos anos que tenho a consciência dos perigos do amianto. Ainda ontem passei na seca do bacalhau em Alcochete, cujos telhados são maioritariamente desta matéria. Está velho e a decompor-se, o que significa que está na fase mais cancerígena da vida deste material. Não é muito grave naquele local desabitado. Não é grave respirar aquele ar por alguns minutos. Mas é grave e potencialmente mortal por cancro do pulmão para quem trabalha ou estuda em locais com amianto. Foram necessárias décadas para comprovar cientificamente aquilo que a simples estatística já dizia: o amianto causa cancro. A indústria de fabricação deste material resistente ao fogo e de grande durabilidade argumentava que sendo uma substância quimicamente inerte não havia perigo e não aceitavam que de facto o seu amianto fosse cancerígeno. Como sempre a indústria protege o seu lucro. Entretanto a ciência fez o seu caminho lento mas seguro: estudou a fundo os indícios seguros vindos da estatística. A resposta chegou tarde para muita gente, mas chegou a tempo de salvar muitas vidas. O amianto foi proibido em Portugal a partir de 2006. Mas porque é que o amianto causa um determinado tipo de cancro? A observação ao microscópio desta substância deu a resposta: este aglomerado de fibras ao envelhecer degrada-se e liberta nuvens de milhões de pequenas agulhas hipodérmicas. Quando inspiramos esta poeira ela vai picar a mucosa olfactiva e os alvéolos pulmonares. Esta agressão permanente obriga á activação dos mecanismos de renovação celular: os tecidos agredidos estão permanentemente a cicatrizar, num processo que se torna uma inflamação permanente. O que a biologia e a medicina provaram é que o despoletar permanente dos mecanismos de regeneração celular leva ao descontrolo dessa reprodução e ao cancro. Durante anos carreguei o peso de saber que o João Pedro frequentou a escola secundária D. Manuel II em Alcochete. Uma escola cheia de amianto. Não sendo pai, e não tendo voz activa gestão desta escola, pouco mais podia fazer do que ir às reuniões de pais e manifestar a minha preocupação. Numa dessas reuniões, ao questionar o director de turma acerca deste problema, um dos pais começou a rir. O problema não foi só o riso do labrego ignorante e atrevido. Ele também tinha lá o filho. O que me surpreendeu foi a ausência de tantos pais na reunião, e o silêncio despreocupado e indiferente dos poucos pais presentes. Houve uma única e honrosa excepção: a avó de uma menina que afirmou que a sua neta sofria de rinite e que o médico lhe tinha perguntado se havia amianto na escola. A senhora não sabia estabelecer a relação, mas quando me ouviu percebeu que realmente o amianto era perigoso. O João andou 3 anos nesta escola, e eu vou andar apreensivo por causa disso. A exposição ao amianto só se manifesta ao fim de 20 ou 30 anos. Parece que finalmente o país acordou para este problema. O amianto é mesmo para desaparecer de vez. Todos nós temos a obrigação de exigir que todo o amianto seja retirado dos nossos edifícios.

Natal


 

Lembro-me como se fosse ontem: a mãe tinha ido à feira do Bombarral. Nesse dia as figurinhas da sagrada família vieram com ela. O básico dos básicos. O menino Jesus, a virgem Maria e o São José.

Nesse Natal tudo o mais foi improvisado: a cabana, feita de pedaços de cortiça, o chão feito de musgo, e o meu encanto de menino, a mirar as figurinhas de barro pintado em tons coloridos. De um lado a Maria, do outro o José. Junto ao menino a mãe colocava a searinha do menino Jesus: um pires com terra onde se semeava um punhado de trigo tirado da arca.

Oferecíamos ao menino o pequeno sacrifício de alguns grãos, na esperança de que o menino Deus retribuísse esse sacrifício no próximo Verão com uma colheita que garantisse o pão nosso de cada dia. Oferecíamos também o sacrifício da chama sagrada, uma pequena candeia de azeite, que iluminava a sagrada família e aquecia o menino, essa mesma chama que também pode ser a das velas de cera, produzida pelas as laboriosas e preciosas abelhas. Porque aos santos, ao Divino e aos mortos não se deve oferecer outra luz e outro calor que não o do azeite ou da cera.

Havia também o profano: sobre a cabana colocávamos um pinheirinho, e à falta de bolas coloridas, impossíveis de comprar, havia bugalhos embrulhados em pratas de chocolates que outros comiam. Eras tu e as manas quem passava o ano a coleccionar essas pratinhas, cuidadosamente alisadas e guardadas entre as folhas dos livros da escola, e que serviam para embrulhar os bugalhos que ficavam coloridos e bonitos, pendurados no pinheiro.
Havia também canções à volta do presépio. Na noite de Natal havia a ceia, pequenas prendinhas, o pai cansado no fim de mais uma jornada na terra, e a mãe à volta da lareira a fazer filhoses. Pouco depois vieste menina trabalhar para Lisboa, e foi contigo que o presépio foi crescendo ao longo dos anos. Assim que a mãe dizia que a mana vinha de Lisboa passar o Natal, lá ia eu sentar-me no valado junto aos eucaliptos, a olhar a estrada da Feteira, de onde te avistava ao longe, lá em baixo.
Nem Lisboa, nem distância alguma consegui jamais cortar os laços da família plasmada nas figurinhas de barro. A pouco e pouco se construiu o presépio: num ano o burrinho e a vaca, símbolos da força e do alimento animal fundamental também para nós, os reis magos, a prometer o poder e a glória ao menino, vindos de longe para oferecer ouro, prenda digna de reis, incenso, perfume sagrado oferecido aos santos, e mirra, que se oferecia aos mortos, antevendo o sacrifício de Cristo 33 anos depois.
Mas o Natal é vida, é calor e luz numa altura em que impera o frio e a escuridão do Inverno. É assim, sempre foi assim neste sopro de vida que para mim já leva 50 anos. Para ti, mais uns quantos. Não importa o tempo, o espírito do Natal és tu, hoje como ontem. A força da vida e da esperança, contra todos os golpes que a vida tem. Este ano não havia musgo no casal, nem na Sertã, onde o fogo destruiu tudo. Mas eu sabia onde encontrar musgo e líquenes para o teu presépio. Nem a minha veia ecologista me impediu de colher esses líquenes e musgos. Sei que estão a desaparecer, mas afinal, que conto eu? A erva praga, os chorões e os eucaliptos estão a acabar com eles! Por isso te levei um saco cheio. E aí está o teu presépio irmã, e junto com ele, a tua alegria de sempre de encher a casa de luz, e da família reunida à volta da mesa farta das iguarias que sempre fazes.

Por nós que estamos vivos. Pelos mais novos, que têm que aprender e manter o sentido da vida e de família. Pela memória dos nossos mortos, que participavam desta união, e que nós sabemos tão bem o quanto quereriam que este espírito subsista pelos tempos do tempo. Porque o teu presépio, feito das tuas figurinhas e da tua alegria, é o triunfo da vida. É Natal irmã, para nós, para os que estão longe mas que a distância não afasta, para todos os que importam. E será sempre Natal, porque o que é verdadeiro nunca morre.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Do Verniz, ou da Falta Dele


 

A obra é de um dos maiores da literatura lusófona e brasileira: Jorge Amado. Chama-se "Tieta" do agreste, e conta a estória de uma jovem que descobre a liberdade e a sexualidade, e por isso é escorraçada da sua "cidade" (no Brasil tudo é cidade) em nome de uma moral falsa e bacoca.
O teatro da vida e da falsa virtude vence e a jovem espancada e escorraçada pelo próprio pai foge para a cidade grande. Tudo o que tem para vender é a sua beleza e juventude. À custa do seu corpo e inteligência vence, e passados 20 anos Tieta regressa rica à sua cidade, no Agreste, com intuito de se vingar.

Essa vingança acontece, mas não no sentido em que a nossa heroína a pensou. No final a cidade cresce, todos aprendem e crescem. A mensagem é aquela que Jorge Amado nos habituou: além da dureza da vida, no fim vem a redenção e a esperança.
A obra seria levada para o pequeno ecrã no final dos anos 80, numa novela memorável que segui com paixão e com o mesmo título: “Tieta do Agreste”. Tornou-se um clássico ver a deslumbrante Betty Faria no papel de Tieta, arquétipo da feminilidade e força das mulheres, brasileiras e não só.
Ficou na memória a sua irmã e sua antítese, a igualmente memorável Perpétua, beata falsa, interesseira, destituída de moral ou de ética, roída pela inveja contra a irmã rica, disposta a tudo para lhe roubar a fortuna e de novo a dignidade.

O fresco da adaptação da obra de Jorge Amado ficou plasmado também noutros personagens. Quem não se lembra do “coroné” e das suas "rolinhas", num papel excelente desse monstro da televisão e teatro que é o Ary Fontora?
Quem não se recorda da D. “Morzinho”, da histérica “Sinira”, da bela e apagada “Tonha”?
Recordo os episódios em que um charlatão chega ao Agreste, e do alerta que esse personagem constituiu: auto-denominado “Pastor Hilário”, representava o fenómeno então surgente das igrejas neopentecostais ao Brasil e do perigo que essa gente representava para os pobres e humildes.
Na novela do Aguinaldo Silva o falso “pastor” era desmascarado e corrido de Santana do Agreste. O pobre padre da cidade nada podia fazer contra ele, mas a heroína sim. Ofereceu ao pastor a única coisa que eles querem: dinheiro. Muito dinheiro. Porque o tamanho da fé dele era do tamanho dos maços de notas que cobiçava.
Há muito que não vejo televisão. Transformada numa enorme cloaca que teria que pagar para ver, decidi prescindir dela.

Recuso ter que pagar para ter um esgoto dentro de casa! Tenho apenas os canais de sinal aberto da TDT e uma parabólica apontada ao Astra e ao Hotbird. E mesmo assim vejo muito pouco.
Pouco mais aprecio do que documentários, e até o canal Odisseia deixou de ter qualidade. Sei que existem agora em streaming canais de documentários, mas não tenho interesse. O meu tempo serve para outras coisas.
Da mesma forma recuso ver séries da moda, sei da natureza humana o suficiente para não querer gastar tempo com NETFLIX e afins. Servem muito bem o propósito de entretenimento (pago à parte) e conseguem o fim a que se propõem de anestesiar hordas de pessoas assustadas e a necessitar de fugas! Não vou por aí.

Reduzido que estou aos canais de sinal aberto caí por acaso ao fazer zapping numa novela brasileira da SIC. A “obra de arte” chama-se "Dona do Pedaço", e aquilo que por lá se passa é o retrato caricaturado e grotesco da queda esplendorosa de um país.
Não nos enganemos: apesar da dimensão continental e das tensões existentes na nação brasileira por conta da sua diversidade étnico-cultural, Portugal conseguiu deixar na América do sul um Estado-nação. Ninguém discute hoje a existência da nação brasileira. Poucos países se podem dar ao luxo de se afirmarem orgulhosos de serem uma nação, mas o Brasil sim.
Há inequivocamente um povo brasileiro, não dois ou mais. O Brasil é o país do samba, do Carnaval, da bossa nova, de grandes vultos da literatura, de Clarice Lispector a Machado de Assis, de Tom Jobim, Vinícius de Morais, de Xico e Bethânia, e tantos, tantos outros que emprestam alma e identidade ao povo do gigante gentil sul-americano.
A dita novela "Dona do Pedaço" tem ainda algumas glórias do passado. O Ary Fontora está lá, tal como a Betty Faria, com as marcas do tempo que os anos não perdoam. Mas é um privilégio que permaneçam entre nós e seria até um prazer revê-los, não fosse o choque de os ver rebaixados a algo tão repugnante.
Na novela “A Dona do Pedaço” os clichés vão no pior sentido. Há um cozinheiro português, caricatura ridícula do “Seu Manuel" dos finais do século XIX, barrigudo e de bigode, padeiro (ou boleiro na versão do século XXI).
Trata-se de um personagem muito de agrado de uma certa camada do povão brasileiro, mais das elites que o fomentam. Só lhe falta dizer “ora pois”, frase que juro, nunca escutei da boca de nenhum português. Nem uma única vez.
A novela que a SIC agora exibe (neste momento deve estar a dar os episódios finais, mas não irei ver) reflecte muitas facetas do Brasil contemporâneo que eu preferiria que não chegassem a Portugal.

Ao nosso país chegam muitos brasileiros em busca de uma vida melhor. Sabem que Portugal não os fará ricos, mas sabem também que o país é sereno e tranquilo, com uma segurança que nem podem sonhar no seu país de origem . Conheço vários, gente séria e trabalhadora, espelho do povo brasileiro, de boa índole e trabalhador. São muito bem-vindos.
O que não é nada bem vindo para mim, que sou apenas uma voz entre 10 milhões de portugueses, é o retrato em forma de estrumeira que a novela da SIC transmite.
A queda esplendorosa do Brasil está lá retratada: na
naturalização do assassino a soldo, como se fosse a coisa mais natural do mundo matar por dinheiro.

Há o casal homoafectivo que nunca troca um beijo, porque os tempos são de moral asséptica e falsa, ao qual não é alheio o facto de ser uma novela da Globo. Da mesma forma que não será alheio a quem pertence aquela estação de TV brasileira e as influências da política e das igrejas neopentecostais que infectam um país e um povo desesperado por conforto espiritual.
Na “Dona do Pedaço” roubam-se fortunas à distância de um toque na "tela" do "celular", mata-se por tudo e por nada, o agente policial é violento com a esposa e corrupto, tanto quanto o bandido que é suposto apanhar.

Mas o mais assustador é que no final da novela os perdidos, a assassina, o viciado em jogo, encontram a redenção nos tais “pastores”. Todos os personagens investem na internet e nas redes sociais, mas o recado nada discreto ou sub-reptício está lá: a redenção nas "igrejas".
Afinal era mesmo o “Pastor Hilario” de há 30 anos, ou os dos seus sucedâneos quem ganhou. Aquela gente venceu, tomou conta do Brasil, um país nas mãos de “crentelhos evangegues” e de loucos vestidos de políticos.

E o que é que isso tem a ver com Portugal? Tem mais do que aqui o cidadão anónimo gosta:
O enredo de “A Dona do Pedaço, do pouco que vi, é mais do que pífio: é baixo, é nojento, é repugnante na mensagem que transmite: lamento pelos bons actores que se vêm na necessidade de baixar a papéis tão rascas.
Mas o pior não é isso: o pior é mesmo saber que a SIC tem capital da Globo e que por via disso este lixo made in Brasil nos é enfiado pelas TV adentro.
Tenho a esperança que pouca gente veja aquilo. Tenho mais esperança ainda que aquela escala de valores (a falta dela) mais aquela redenção em “igrejas” que alimentam “pastores” a dízimo não ecoe por terras lusas.
Que o fenómeno seja social e culturalmente bem-visto no país irmão (irmão? Não, o Brasil não é irmão de Portugal, é filho). Tudo bem. Mas “Igrejas” destas por cá dispenso. Eu e milhões de portugueses.
Na hipótese remota de algum responsável da SIC ler isto, fica a mensagem: tenham vergonha na cara e tratem de afrontar os tipos da Globo que nos impingem este lixo. Não sei o que é que 10 milhões de portugueses pensam disto. Mas eu sou português, penso assim e estou num país livre, próspero e seguro.
“A Dona do Pedaço” não é uma simples novela: é um insulto à sensibilidade e à inteligência, à civilidade e à civilização, à dignidade da pessoa humana. É estrume coberto com uma capa de verniz feito de “celurlares” de revolvers, de assassinos a soldo, de redes sociais, de filhos que roubam pais, de pastores que acenam com bíblias, enquanto as suas atitudes ofendem o espírito do livro que é sagrado para milhões de pessoas. Tem vergonha na cara SIC!
PS: sei que o fim da novela no Brasil já aconteceu e que causou polémica. Não sei se fizeram um final diferente para Portugal. Com um ou outro final, passaríamos bem sem isto!

Há Vida Inteligente na Terra?


 
Carl Sagan e Losif Shklovsky escreveram em 1966 o livro “A Vida Inteligente no Universo”. Li-o 15 anos depois e foi mais um livro que me marcou.
 
Na altura a tensão entre a URSS e os EUA foi tal que os autores, que não se conheciam pessoalmente, tiveram que arranjar um subterfúgio para não causar problemas ao cientista russo. O texto de sua autoria era precedido e terminado por um delta para que ficasse claro quem escreveu o quê.
Era este o espírito da época, com a ideologia a meter-se onde não deve, na ciência. Ainda que já estivesse-mos longe dos anos de terror do louco sanguinário Stalin, a vida na então URSS ainda era muito policiada.
Isto aconteceu “ontem”. Aconteceu há pouco mais de meio século, e hoje parece inacreditável. Hoje é a Rússia que leva os astronautas americanos para o espaço. O mundo girou muito, deu uma volta de 180º.
Ontem vi mais um episódio da nova série “Cosmos” e tive o prazer de rever e aprofundar mais uma estória triste de interferência da política na ciência. Já mal me recordava disto.
O nome era Nikolai Ivanovich Vavilov. Foi um botânico e geneticista russo que viveu entre 1887 e 1943. Homem bom e discreto, cientista arguto, fez pesquisas por todo o mundo em busca das sementes que deram origem a tudo o que alimenta hoje a humanidade. O seu compromisso foi com a ciência e não com a política, apesar de saber em que país e em que mundo vivia e do terror do regime Estalinista que matou 90%do politburo, amigos e a própria família. O ditador tinha uma filha que o adorava e que teve que fugir para os EUA!
Com uma promissora Carreira pela frente, Nicolai Vavilov foi inicialmente admirado e respeitado pelo seu trabalho, baseado num profundo conhecimento da biologia, das leis de Darwin e das leis de Mendel. A genética, então ainda no início dos estudos, foi atacada e escarnecida por um pseudo-cientista de nome Trofim Denissovich Lysenko (1898-1976) que argumentava que o estudo da genética era uma pseudociência burguesa que procurava dar justificação biológica às diferenças de classe.
Para o invejoso Trofin era possível chegar ao triunfo da ciência proletária sobre a ciência burguesa. A influência de Lysenko sobre a política agrária soviética influenciou a URSS entre 1929 e 1948. A sua ideologia ignorante e contrária à verdadeira ciência foi do agrado do ditador e levou a erros que provocaram a fome e a morte a milhões de pessoas, na Rússia, mas também no infame Holodomor ucraniano. Enquanto Vavilov provinha de uma família abastada, Lysenko era filho de um camponês ucraniano, o qual, para os dirigentes bolchevistas, o colocava num sítio privilegiado.
Trofin roubou o lugar de Vavilov, que acabou condenado e preso, tendo disso morrido.
Hoje, o imenso tesouro de sementes que alimentam o mundo deve muito a um homem que amou a ciência acima de tudo, e que amou a humanidade ao ponto de correr o mundo todo para criar um banco de sementes que mataria e ainda mata a fome da humanidade. Mas a humanidade, mais as suas ideologias, os seus medos, fantasias e delírios costuma matar quem a quer salvar. Quem toca nas fantasias doces em que assentamos costuma acabar mal. Nikolai Ivanovich Vavilov acabou assim: morreu por confinamento e inanição.
 
O episódio de ontem do “Cosmos” foi resgatar esta memória, fez justiça a quem já não se pode sentir justiçado. Mas foi muito mais do que isso, foi também um atestado de morte da velha e infame guerra fria.
Neil deGrasse Tyson passeou pela Rússia, contou esta estória que merece ser contada, talvez até tenha sido um pouco excessivo, não sei. Mas sei que no tempo em que o Sagan e o Shklovsky escreveram em 1966 o livro “A Vida Inteligente no Universo” aquele passeio pela Rússia seria de todo impossível. Era a época de outros medos e de outras desconfianças.

O que o Tyson fez neste episódio do “Cosmos” foi uma declaração de amor dos EUA à “Mãe” Rússia. É bonito, é útil e abre a porta para outras guerras e outros combates que estamos a travar de forma feroz neste momento e bem mais úteis.
Passaram-se 54 anos desde a edição do livro “A Vida Inteligente no Universo”. Meio século. Uma eternidade.
O mundo mudou muito, mas terá que mudar muito mais!

Saudade

 


Um disparate que os portugueses adoram repetir desde que o Teixeira de Pascoaes o inventou: que a saudade é um exclusivo dos portugueses e que a palavra "saudade" não tem tradução.

"Pascoaes e a “invenção” da Saudade"
 

  • "Teixeira de Pascoaes, poeta, escritor, ensaísta, é também o chefe de fila de um movimento literário conhecido por “saudosismo” que se desenvolveu a partir de 1912, como um movimento artístico e literário de reacção contra o cosmopolitismo. Centrado na revista A Águia e caracterizado inicialmente por uma grande abrangência, o movimento liderado por Pascoaes insere-se no quadro mais geral das tendências nacionalistas que se desenvolviam na vida portuguesa desde os anos 90 do século XIX e que se acentuaram com a implantação da Rapública, encarada como uma ocasião única para a regeneração do país. Os principais objectivos do movimento eram devolver à cultura nacional e à vida portuguesa em geral a sua grandeza perdida, substituindo as influências estrangeiras – tidas como responsáveis pelo declínio do país desde os descobrimentos – pelo culto das coisas portuguesas, que reflectissem a alma nacional.
  • É neste quadro genérico que Pascoaes irá propor a saudade como tema estruturador central do carácter nacional português. Não era esta a primeira vez que o tópico era tratado dessa maneira. Como de resto Pascoaes é o primeiro a lembrar, D. Duarte, Duarte Nunes de Leão, Luís de Camões, Rodrigues Lobo ou Almeida Garrett já tinham encarado a saudade como um motivo especificamente português. No final do século XIX, António nobre (1867-1900) tinha de novo colocado o tema da saudade na agenda poética e cultural portuguesa, estabelecendo um nexo entre a nostalgia da grandeza perdida e da pátria e nostalgia da felicidade da sua infância. Mas, independentemente deste desenvolvimentos anteriores, com Pascoaes era a primeira vez que alguém considerava a saudade não apenas como um tema especificamente português, mas como o tema português por excelência, no quadro de um empreendimento de cariz declarada e resolutamente nacionalista com prepercussões importantes na vida cultural portuguesa.
  • Propondo a saudade com núcleo estruturador da alma portuguesa, Pascoaes irá reestruturar profundamente o modo como a temática da psicologia étnica portuguesa era até então vista. Assim, e em contraste com a dispersão até então prevalecente, parece gerar-se um consenso sobre a melhor maneira de caracterizar a psicologia étnica portuguesa. esta – na continuidade das propostas de teófilo Braga – deveria ser pensada, por um lado, ao nível dos sentimentos. E, por outro lado, deveria ser também vista – contra Adolfo Coelho e Rocha Peixoto – como um factor de hierarquização positiva do povo português.
  • De facto, e em primeiro lugar, Pascoaes encarava a saudade como algo que definiria a especificidade da psicologia étnica portuguesa ao nível dos sentimentos e das emoções. No seguimento de Duarte Nunes de Leão e de Almeida Garrett, Pascoaes definiu a saudade como “o desejo do ser ou da coisa amada, em conjunto com a dor pela sua ausência. Desejo e dor confundem-se num só sentimento” que combina um elemento carnal ou material – o desejo – com um elemento espiritual – a dor – , uma orientação em direcção ao futuro – o desejo como esperança. a saudade seria nessa medida, de acordo com Pascoaes, um sentimento contraditório que ligaria universos tidos usualmente como separados, como o material e o espiritual, o passado e o presente.
  • Definida desta forma, a saudade deveria ser considerada, em segundo lugar, não aopenas como a essência mesma da alma portuguesa, mas como um factor de hierarquização positiva da cultura nacional. De facto, a saudade seria o grande sentimento que se encontra por trás da grandeza de Portugal e dos principais acontecimentos que sucessivamente lhe deram expressão, como a fundação de Portugal por D.Afinso Henriques, a vitória de 1385 em Aljubarrota, os descobrimentos, o sebastianismo, a Restauração de 1640 ou a revolução republicana de 1910. Nessa exacta medida, restituir à saudade o seu lugar central na vida portuguesa seria equivalente a recuperar para Portugal a sua grandeza perdida.
  • Produzida a partir do ensaísmo literário, a saudade de Pascoaes não releva entretanto exclusivamente de uma reflexão de matriz literária. A grande inovação que Pascoaes instroduziu no tratamento da saudade passa efectivamente pelo modo como ele elabora uma espécie de “etnografia espontânea” do tema, isto é, como produz em seu torno um conjunto de reflexões de forte orientação etnocultural em que conceitos e ideias sobre o povo, sobre raízes étnicas e sobre cultura ocupam um lugar relevante. Assim, a saudade poderia ser vista, antes do mais, como uma criação colectiva do povo português, enquanto entidade etnogenealogicamente concebida. a sua existência remontaria de facto ao tempo dos lusitano, vistos como o produto da combinação de um elemento ária – ou ariano – com um elemento semita. esta origem dual da cultura lusitana e, depois, portuguesa, expressar-se-ia de resto na própria concepção contraditória da saudade como dor e desejo. enquanto que a dor se ficaria a dever à influência semita, o desejo reflectiria o peso das raízes árias na formação étnica de Portugal.
  • Simultaneamente, na argumentação do carácter português da saudade, Pascoaes recorreu abundantemente a factos extraídos do universo da cultura popular portuguesa. À semelhança de Teófilo Braga, concedeu grande importância à poesia popular portuguesa e, em particular, ao cancioneiro popular, encarando-o como “a obra mais representativa da raça” e como aquela onde melhor “transparece a fusão dos contrastes”. Rituais religiosos como a Encomendação das Almas, assim como outras expressões da religiosidade popular foram também utilizadas por Pascoaes como instâncias fundamentais de demonstração do carácter português da saudade.
  • Como se sabe, a publicação das teses de Pascoaes suscitou uma polémica muito viva. Um dos adversários mais virulentos de Pascoaes foi António Sérgio (1883-1969). Defendendo enfaticamente um ponto de vista racionalista e anti-nacionalista acerca do tópico, Sérgio optou por centrar os seus ataques a Pascoaes em torno do carácter supostamente intraduzível da palavra saudade. De facto, segundo Pascoaes, o povo português seria:
  • “o único povo que pode dizer que na sua língua existe uma palavra intraduzível nos outros idiomas, a qual encerra todo o sentido da sua alma colectiva (…) Sim: a palavra saudade é intraduzível. O único povo que sente a Saudade é o povo português (…). Os outros povos europeus sentem naturalmente uma espécie de saudade que em francês é souvenir, em espanhol recuerdo, etc. Mas este sofrimento, nesses Povos, não toma alma e o corpo que adquire no sentir português. Souvenir ou recuerdo são apenas um elementos da Saudade, cujo perfil é inconfundível. e por isso, ela se exteriorizou numa palavra que não tem equivalente noutras línguas”
  • Para antónio Sérgio, pelo contrário, a palavra saudade não era de maneira nenhuma intraduzível:
  • “muito ao contrário do que Pascoaes afirma, a palavra saudade é traduzível. Várias nações a representam por um termo especial: o galego tem soledades, soedades, saudades; o catalão anyoransa, anyoramento, o italiano desio, disio; o romeno, doru, ou dor; o sueco saknad; o dinamarquês, savn; e o islandês, saknaor…”
  • Carolina Michaelis de Vasconcelos também não subscrevia as teses de Pascoaes sobre o carácter intraduzível da saudade, tentando igualmente – à semelhança de Sérgio – mostrar que um certo número de línguas europeias possuíam também equivalentes da saudade:
  • “é inexacta a ideia que outras nações desconheçam esse sentimento. É ilusória a afirmação (já quatro vezes secular) que o mesmo vocábulo Saudade (…) não tenha equivalente em língua alguma do globo terráqueo e distinga unicamente a faixa atlântica, faltando mesmo na Galiza de além-Minho”
  • Segundo Carolina Michaelis, saudade tinha de facto equivalente em quatro outras línguas da península ibérica: soledad ou soledades em castelhano, senhoredade no asturiano, morrinha no galego e anoryanza e anoryament no catalão. De resto, seria possível encontrar termos similares noutras línguas europeias: sehnsucht em alemão, längta em sueco. A particularidade da saudade residiria no seu uso mais frequente em português, por exemplo, durante os descobrimentos ou na literatura, e na importância da sua contribuição para a configuração da “alma portuguesa”.
  • Apesar desta controvérsia, as ideias de Pascoaes receberam em geral um acolhimento bastante favorável. Como escreveu Óscar Lopes, “as principais ideias de Pascoaes estão em sintonia com a cultura portuguesa do seu tempo” e, entre as elites culturais portuguesas, a saudade torna-se num instrumento relativamente usado para falar nas especificidades do ser português. (…)"

  • Leal, J. (2000). Etnografias Portuguesas (1870-1970) – Cultura Popular e Identidade Nacional. Ed: Publicações D.Quixote, Lisboa

Saciedade


 
Os corpos só se saciam acordados, mas as almas também se saciam no sono e no sonho.

segunda-feira, 22 de março de 2021

A Caixa das Jóias

 

A caixa das jóias guarda tesouros
Às vezes guardava moedinhas, poupadas a custo pela mãe e pelo pai.
Serviram para ir à loja da senhora Tita comprar um pacotinho de bolachas baunilha, que levavam o meu paladar de menino às portas do paraíso.
De vez em quando, e se as moedinhas desapareciam da caixa, eu procurava na gaveta da cómoda, e não tinha que enganar: lá estava o prémio, feito de bolachas, e do sorriso feliz espelhado no rosto dos pais.
Na caixa das jóias cabiam todos os tesouros que pertencem aos pobres.
Nunca viu ouro, notas, diamantes, pedras preciosas. Quem disse que esses importam?
Na caixa das jóias hoje sobra espaço vazio, resta o velho relógio do pai, mais o anel de prata da tia Caldeira.
E no entanto nenhuma caixa de jóias é mais rica do que esta. Ela está cheinha, a abarrotar, a transbordar de tesouros.
Recordações de uma infância feliz, de colo e de mimo, dado sem reservas nem condições, vindo de pais e manas, privilégio de ser caçula e único rapaz. Um menino nas mãos das fadas!
De nada me importa o vazio de ouro ou de gemas preciosas, que nunca teve nem tem: a minha caixa de jóias sempre guardou outros tesouros. Ontem, as moedinhas que compravam bolachas baunilha. Hoje, o meu imenso tesouro de recordações e saudades.