domingo, 21 de março de 2021

Eucaliptos, Galinhas e Demónios

 


O ano terá sido por volta de 1971 e a estória conta-se assim:

A nossa casa tinha um pequeno quintal, paredes feitas de cana, uma porta tosca do quintal para a estrada, e eucaliptais e pinhais contíguos tudo à volta.
Era comum as galinhas escaparem do quintal para ciscar e esgravatar nas redondezas.
Não raras vezes a mãe, eu ou as manas lá tínhamos que procurar os ovos que as galinhas chocas iam pôr fora, no instinto maternal de esconder os seus preciosos ovos que prometiam pintainhos.
Acontece que ao lado do quintal havia um eucaliptal onde as galinhas gostavam de esgravatar, e o dono, a quem a mãe cheia de medo chamava de "diabo negro", gritava impropérios quando vinha de São Bartolomeu visitar os seus eucaliptos e via as galinhas por lá!
"Filho, não vás para a rua, que anda aí o Diabo negro"!
Que mal faziam umas galinhas a esgravatar a terra?!
Que vivências terá conhecido aquela criatura, que infância terá sofrido, para ter tão "maus fígados"?!
O facto é que, apesar dos meus 3 ou 4 anos, ainda antes de ser operado ao pescoço para deixar de ser o "aleijadinho" "cabeça à banda", o medo e a recordação do diabo negro nunca se apagaram.
A coragem da mãe e a equipa de médicos do hospital D. Estefânia fizeram o milagre de pôr o pescoço no lugar. Deixei de ser o "cabeça à banda", mas recordo esse tempo, as luzes do bloco operatório sobre mim, os médicos, a conversa com eles, a corrigir uma médica que dizia que eu era do Reguengo Grande, e eu com 4 anos a explicar-lhe que não, que era de São Bartolomeu.
A mãe sentada na minha cama a chorar, a motinha a corda que a tia Felicidade me deu, e que outros meninos rapidamente surripuaram, a alegria de saberem que tinha ficado curado, o frade franciscano que meteu conversa com a minha mãe na rua D. Estefânia, tão simpático, bonito no traje castanho e corda à cintura, a alegria do pai e das manas quando souberam que o "Nino" tinha ficado curado.
Há dias assim, em que as memórias correm como um rio sem barragens!
Entrei há uns 5 anos de novo nesse hospital para instalar um sistema de controlo de acessos.
Rever aqueles corredores ao fim de 40 anos trouxe uma avalanche de memórias e de emoções. Revivi aquele corredor de novo, eu no meio de vários meninos a ir para o jardim brincar, o pijama todo roto, e a mãe que vinha no sentido contrário, trazia-me morangos, e não me viu no meio da criançada. Fui eu que a vi e corri para ela.
Dói ter partido tão cedo, a angústia de a ver morrer aos poucos, os 4 anos de luta contra o cancro no cérebro, e dói não ter tido tempo para a mimar e defender dos "diabos negros" desta vida.

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