domingo, 21 de março de 2021

A Festa

A festa.

Há perguntas que devemos fazer.
Não sou um "puro urbano". A minha infância e juventude foi passada no campo. Nativo da terra da qual se obtinha o sustento, não a endeuso, mas também não a renego. Sobretudo não me envergonho dela. Era uma vida dura mas diga. A roupa suja do pastor ou do jornaleiro é mil vezes mais limpa do que o colarinho branco do currupto. Apesar do contacto regular com Lisboa, até aos 17 anos essa foi a minha realidade.
Há 50 anos Portugal era muito diferente do que é hoje. Hoje é incomparavelmente melhor. Quem viveu no campo e dele dependeu sabe que a fome, que felizmente nunca conheci, era uma realidade sempre à espreita. Um ano de chuva ou de estiagem podiam significar não haver trigo nem milho, ou seja, falta de pão. Base das bases, numa casa pode faltar quase tudo, mas o pão não!
Mas nem tudo foi mau. Fruta e vegetais ia havendo, a sopa nunca faltava. A fruta era a que a época dava: maçãs, melões, peras, uvas. Frutas exóticas ou fora de época nunca. Depois havia a carne. E essa quase nunca vinha do talho, porque não havia dinheiro para tal. No entanto carne nunca faltou. As sobras que não serviam para alimentação humana eram todas recicladas. A palha alimentava os animais no Inverno, o farelo ou restos de batatas ou de frutas alimentavam porcos e galinhas. Nada se perdia. Era um tempo em que o ciclo era completo e a expressão "pegada ecológica" não existia, porque ali não fazia sentido. Fazia sim noutras latitudes, em povos que viviam em regimes hipercaloricos, onde se queimava combustível como se não existisse amanhã. Esses sim, desenvolveram um modelo de superabundância sem cuidar que a Terra e os recursos são finitos, e que a generosa capacidade de regeneração da Terra não é todavia infinita.
Convém salientar aqui uma verdade que nos dias de hoje é muito contestada, sobretudo pelas camadas sociais que só conhecem a vida das urbes: ao contrário do que os vegetarianos e similares propalam, não é verdade que o Ser humano seja vegetariano. O registo fóssil e a configuração da dentição humana demonstram de forma inequívoca que o Homem sempre comeu carne e evoluiu com ela. Quer o Neandertal, (caçadores que consumiam mais carne do que nós) quer o moderno Sapiens Sapiens sempre comeram animais. Sem carne o humano não seria humano.
Foi dentro dessa dinâmica que fui criado: sempre tivemos animais. Ou bestas de carga, os diversos burros que tivemos, ou cães de caça, ou animais de consumo, onde se contavam galinhas, coelhos, pombos, carneiros e porcos.
Nunca vi esses animais serem mal tratados de forma gratuita. Havia castigos, mas entre esses nunca houve tortura ou demasiada violência. Também nunca vi a outra violência, a de humanizar seres que não são, não podem ser nem querem ser humanos. Mas ás vezes havia castigo: um burro mais teimoso, uma ovelha mais afoita e a verdasca era certa no lombo. Nunca era feito com o sentido de infligir dor ou violência desenfreada. Nunca foi orgia de sofrimento sem sentido. O animal sofria pela vida, o homem também. Assim se domesticavam os animais. O cão e o burro recebiam abrigo e comida, devolviam força de trabalho ou corrida de velocidade para apanhar coelhos.
Também os animais de consumo eram respeitados. A cama do gado, feita de palha ou de mato (como picavam os tojos que eu apanhava!) para conforto do rebanho, que sem ela ficaria a nadar em lama dos seus excrementos. Essa lama e cama velha que era amontoada e mais tarde servia para estrumar as terras. Mas também o chão da cortelha, onde o porco era criado e engordado até ao dia da matança era mantido limpo. Muitas vezes falávamos e acariciavamos os animais. ",Anda cá russo, russo". E lá vinha o o porco para lhe coçarmos os lombo. Um dia de festa que garantia carne para meses ou mesmo um ano. Carne conservada em água e sal. Enormes potes de barro, os salgadoros, onde a mãe ia retirando carne que era demolhada e cozinhada no dia seguinte. A melhor sopa do mundo, posso garantir.
Mas o ponto aqui é mesmo esse: o respeito pela vida do animal que nunca era mal tratado, e se às vezes era castigado, esse castigo tinha o propósito de permitir a convivência entre pessoas e animais.
Um dia vinha o sacrifício. Se o animal sobrevivesse saudável até esse dia - um animal que adoecesse e morresse eram um drama, já que todo o esforço de criação se perdia e lá vinha a fome espreitar. Mas o dia do sacrifício eram uma festa. Vinham tios e primos, havia abundância de comida e o chão da casa á noite virava cama. Uma alegria, permitida pela morte do animal. É duro? Sem dúvida, mas as leis do universo não foram escritas pelo Homem.
O ritual da morte obedecia a preceitos, eram uma performance. Cabia a um homem a tarefa sanguinária de espetar a faca no pescoço do animal. Era uma arte apreciada um homem saber levar a faca até ao coração. Isso permitia um sangramento abundante, carne clara e livre do sangue, e sobretudo a minimização da agonia do animal que dessa forma morria mais depressa. Havia outros preceitos que ajudavam a minorar o sofrimento, desta vez dos carrascos. Se o porco demorava a morrer os homens ralhavam com mulheres e crianças; alguém ali estava com pena do animal! Claro que todos sentiam pena. Uns mais do que outros. Todos ali sabiam que um animal não é pessoa, mas sente e sofre como ela. Mas sem o sacrifício era a fome. A catarse tinha outros recursos. Depois de morto o animal era lavado, raspado e chamuscado para limpar pelos e impurezas. A camada exterior da pele era toda retirada. Era nessa altura que vinha uma brincadeira: as unhas dos cascos eram retiradas depois da chamusca, e as crianças divertiam-se a pendurá-las nos bolsos traseiros das calças dos homens. Assim se exorcizava a tristeza e a angustia do sacrifício. Mais tarde o porco era aberto e retiradas as vísceras que eram aproveitadas. A única coisa que era desperdiçada era a bexiga, que os rapazes enchiam de ar para jogar á bola.
O porco era pendurado já sem visceras para arrefecer e escorrer as carnes, e no dia seguinte homens e mulheres procediam á desmancha. Nesses dias partilhava-se a carne, nunca faltando o cozido e o sarrabulho, e no fim partilhava-se carne e toucinho, definindo também assim laços de familiaridade que nunca se quebravam. Outras partilhas incluíam o trabalho no campo, nas sementeiras e colheitas.
Porquê esta partilha de memória? Porque hoje o debate anda á volta das touradas e porque acredito que esta reflexão deve ser feita.
Faz-me confusão que ainda hoje existam pessoas incapazes de distinguir a morte por necessidade de alimento da morte por prazer sádico. A primeira eu conheci muito bem. A segunda não. Nem por uma vez vi ou fui incentivado ao mau-trato animal com objectivo de retirar disso prazer. Isso define-se por sadismo e sempre foi censurado.
De que falamos então quando nos referimos á nossa relação com animais? O que nos faz distinguir entre um animal que só existe para ser torturado e morto, dentro de uma arena ou fora dela (nisso os espanhóis são mais honestos, o touro é morto na arena. Os "piedosos" portugueses decidiram não o ver, mas o touro morre na mesma), e um animal de carga ou de caça, impensável comê-los, apesar de haver culturas onde isso acontece, ou ainda, porque existem animais que precepcionamos como quase humanos, quase família, e como tal impossíveis de virem a ser comida?
Somos um Ser em evolução rápida e acelerada. Práticas que antes eram permitidas hoje deixam de fazer sentido. A nossa construção enquanto Ser sempre nos levou a abandonar práticas que perdem sentido á medida que a nossa consciência cresce.
É nessa dinâmica, onde a civilização sempre se construiu contra a tradição, que a touradas se insere. Sim, é tradicional. Também as lutas de gladiadores já foram, também queimar bruxas em praça pública o foi. Hoje são práticas inaceitáveis. A tourada é a prática seguinte. Nada justifica torturar e matar animais por prazer. O sadismo pode vestir todas as fardas e artes que quiser. Nunca deixará de ser sadismo por causa disso. Reconhecer isso é mais um passo na elevação do Ser humano.
Falta um passo seguinte: o para já insanável conflito entre a necessidade de proteína animal e a consciência de que a produção em massa de animais de consumo é uma insanidade em termos de sustentabilidade e uma imensa máquina de terror animal. Porque se um animal pudesse desenhar o diabo desenharia um homem.
Nesta dinâmica aparece outro extremo: pessoas que criam com animais laços que nivelam tudo, ou pior, pessoas que preferem animais a pessoas! Tenho que me socorrer de novo do meu período "primitivo". Eu adorava os meus animais, sobretudo os cães. Mas nunca me passou pela cabeça gostar mais deles do que das pessoas. Sempre soube respeitar a sua animalidade, nunca os quis antropomorfizar. Um cão é um cão. Além do mais é um animal instintivamente sujo. Se um cão encontrar um animal morto fresco e ao lado um animal em putrefacção, ele vai preferir o segundo: mais, ele irá espojar-se nele para ficar com o cheiro e marcar território.
Tenho pouca disponibilidade para fazer amizade com pessoas que preferem cães a pessoas. Desejo-lhes as melhoras.
Portugal mudou muito em meio século. Abandonou o campo, torno-se urbano e perdeu a ligação com o mundo rural. E aqueles que não o perderam sofrem de uma espécie de amenésia, escondem um tempo que foi duro, mas também uma forma de vida. Felizmente essa amenésia não me atingiu.
A vida animal merece respeito, mas de forma equilibrada. A nossa relação com eles irá evoluir. A produção de carne em laboratório irá substituir a produção animal. Claro, o leão irá continuar a caçar e a comer a gazela. Eles não podem fugir das suas naturezas. Mas o Ser humano pode. Atingiu um patamar onde a consciência lhe permite escolher. Muitos irão querer ficar no passado, mais próximos do animal do que do divino. Mas a maioria certamente irá querer continuar a elevar-se acima dessa animalidade. É um caminho e um destino que já trilhamos há milhões de anos e que só tem um sentido.


 

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