sábado, 13 de abril de 2019

Sete Espíritos Malignos



Posso indicar o mês: seria certamente Julho, porque me lembro das ameixoeiras que davam ameixas amarelas. Eram três, e nesta altura do ano vergavam sob o peso dos frutos, grandes, sumarentos e muito doces. Caminhava eu criança, talvez com os meus 6 anos, juntamente com os pais e com as irmãs em direcção à vinha. Pedaço de terra que distava mais ou menos a um quilómetro da nossa casa, arrendado ao pai, e de onde se colhiam as uvas por alturas de Setembro.
Íamos sulfatar as cepas, precavendo assim o míldio letal que costumava atacar a vinha quando o nevoeiro avançava por terra, vindo de Peniche, numa altura de calor. Humidade e calor eram calamidade certa que o pai evitava com enxofre e sulfato de cobre. Mas as ameixoeiras ficavam ao pé da nossa casa, no quintal adjacente à casa enorme e em ruínas que o tio João havia construído antes, por volta de 1930 com o dinheiro que ganhou na América.
Nunca se gozou da casa, por conta da eterna visita nunca convidada do anjo negro. A casa ficou vazia, e a propriedade foi comprada por um homem rico da vila que raramente a visitava. Coube ao pai velar pela ruína e respectivo quintal, onde havia as ditas ameixoeiras, mais uma figueira que faziam as delicias das crianças quando os frutos maduros pendiam dos galhos. Assim é a lei imutável desde que o mundo é mundo: o tio João, que morreu muitos anos antes de eu vir ao mundo, plantou as árvores de fruto. Mas o tempo das árvores não se mede pelo tempo dos homens, podendo nós por aí medir a grandeza da alma de um homem, quando ele planta uma árvore sem nunca saber se virá a colher os seus frutos.
O tio João plantou aquelas árvores, e era eu e as manas que os comíamos! Não só nós: a caminho da vinha cruzávamo-nos com a família do “Terramoto”, e lá vinha o “Russo”, menino da mesma idade que eu, a correr e a pedir: “quela pão, quela pão, quela ameixa, quela a meixa” - quero pão, quero pão, quero ameixas, quero ameixas. O Russo era um menino normal, que vivia no casal a seguir ao nosso (no Oeste existem casais, e não montes) e com quem eu brincava muitas vezes.
Vivia ele com os pais e os irmãos, mas foi no irmão Zé que me detive pela estranheza: semi-nu, preso com uma corda à cintura, sentado no chão poeirento, sujo e ausente. O Zé nunca falava connosco nem queria brincar, e eu na minha ignorância de criança achava que seria por ser muito mais velho. Na verdade o Zé levava de avanço apenas mais uns três anos de idade do que eu. Lembro-me que o Zé tinha uns olhos lindos, azuis. Devo ter visto aqueles olhos uma única vez. Quando os adultos passavam e lhe davam os bons dias o Zé permanecia mudo e quedo, mas naquele dia, e por uma única vez, ergueu os olhos à nossa passagem, num esgar que me pareceu uma tentativa de um sorriso. O que aqueles olhos quereriam dizer foi dúvida que ficou a pairar no meu espírito até hoje. Haveria a minha mãe de me explicar mais tarde que o Zé era assim mesmo, “atrasadinho” e que nunca falava nem respondia às pessoas. Ele não era “normal”.
Noutra conversa que escutei, entre a mãe do “Russo” e do Zé e a minha mãe, (porque as crianças não entendem destas coisas e por isso duas mulheres podem partilhar estas conversas à vontade na sua presença), o esclarecimento da primeira: que o Zé estava preso por uma corda à cintura “para não fugir”. Dizia a mãe dele que tinha medo, que havia nascido uma rapariga, e que tinha medo que o filho um dia viesse a “avançar” para a irmã. Maior ainda seria o medo quando ela já fosse mulherzinha! Nessa longa conversa contou que estranhou o comportamento do filho logo à nascença, e para mostrar que era mulher de entendimento e que não se deixava ficar de braço cruzados, havia ido a uma consulta com a bruxa de São Bartolomeu, mulher afamada a quem os pobres aldeões recorriam nas horas das aflições. Foi a bruxa que lhe havia informado que o filho estava possuído por não um, mas por sete espíritos malignos! Era tal a força do mal que nem os seus poderes poderiam fazer algo pelo menino. Desta forma lá continuou o Zézito preso por uma corda, nu, roto, maltrapilho, ás vezes ao frio e à chuva, outras na torreira do Sol, enquanto os pais labutavam na terra pela parca alimentação. E enquanto o tempo avançava, crescia mo medo do Zé “avançar” para a irmã. Havia que resolver a situação, e a solução veio com a ajuda do “estado”. O José foi internado num asilo! Descobri há pouco o fim trágico do menino sempre ausente: o José pôs termo à sua existência no tal asilo. Os “sete espíritos malignos” deixaram de ter um corpo para habitar. Na verdade o Zé era autista profundo. Aconteceu que a pobreza e a ignorância extremas dos anos 70 aliada à incapacidade dos médicos e da sociedade para ajudar atiraram o Zé para um lar. O menino que havia de se tornar adolescente e chegar a jovem adulto ficara cansado da prisão da sua mente e decidira partir. Finalmente liberto da corda, do calor e do frio, do medo e da prisão da sua mente, da ausência dos pais e dos irmãos. Que crime terás cometido tu noutra vida Zé - porque nessa vida não foi seguramente - para mereceres tal castigo? Ou foi o tal Deus omnipotente e omnipresente que na sua infinita frieza e crueldade assim o determinou?! Fosse eu um pintor e eternizaria o teu olhar num quadro. Aquele olhar que por uma vez me lançaste quando eu era um menino de 6 anos e que hoje me parece um grito desesperado clamando por uma ajuda que nunca chegou.

Juncos


Lembraste-me agora de um tempo antigo, embora para mim pareça que foi ontem: há na Lourinhã uma quinta milenar, a quinta da Moita longa, a uns 2 quilómetros da casa dos meus pais. 
A quinta deve ter tido origem durante a ocupação romana, como atestam o bosque de loureiros e a muralha romana. Um tal cônsul romano de nome Laurus terá vivido por lá e terá dado o nome à Lourinhã. 
No limite da quinta, e num vale cavado corre um ribeiro que esconde umas ruínas interessantes: dois tanques enormes de pedra encimados por uma fontainha, um poço cheio de lodo, muitos choupos, e juncos, muitos juncos. Era aí que o meu pai e o meu tio Armando iam todos os anos apanhar os ditos juncos por alturas de Agosto. Mais tarde esse junco seria usado na empa das vinhas.
 É esse tempo que agora recordo, os homens a arrancar junco dos charcos, as mulheres sentadas à sombra fresca do choupal a escolher as melhores plantas, que espalhacam em leques de verde para secarem no cão, e as crianças - onde me incluía - a brincar no ribeiro e nos charcos, a apanhar peixinhos e cobrinhas de água, ou enguias que os adultos fritavam para o almoço. 
Posso fechar os olhos e retomar a esse tempo feliz. Sinto o cheiro da terra quente e húmida, fértil como só a terra rica em água e húmus consegue ser. Vale pequeno e esquecido, hoje totalmente perdido entre canas e silvados.
 
Sinais de um tempo menos antigo, (só tem mil anos), em que os monges e engenheiros da ordem de Cister secaram aquelas terras pantanosas  e onde hoje restam os vestígios de pedra desse esforço que fez recuar o mar mais de uma dezena de quilómetros, até à Areia Branca. Para mim ficou a memória do tempo feliz da infância breve. 
Ainda hoje, quando passo por um jardim que esteja a ser regado, ou onde a relva esteja a ser aparada, retorno de imediato ao tempo da terra quente a cheirar a seiva fresca, aos risos felizes de crianças e adultos, à vida que então corria doce e despreocupada.

A Voz do Dono


De todas as estátuas dos santos da igreja de São Bartolomeu dos Galegos, paróquia a que pertencia, a que mais me impressionava era mesmo a do santo com o mesmo nome: num nicho da parede que separa o altar do corpo da igreja, de ar severo, faca numa mão, e na outra uma corrente com que prendia e segurava o diabo que tinha a seus pés. A figura grotesca do diabo e o ar severo do santo, aliados à estória que acerca dele o pai contava conjuravam-se para criar um medo real no meu imaginário de criança. O ar reprovador dos santos, juntamente com o medo incutido pelo sermão do padre na missa de Domingo faziam com que à noite tivesse pesadelos: os santos, feitos de barro, ganhavam vida - afinal não foi assim que deus criou Adão e Eva?- vinham-me buscar para me entregarem ao fogo eterno do inferno, onde os meus pecados de criança certamente me condenavam. Doçura ali, só mesmo no rosto da Nossa Senhora, a nossa mãe divina, que nos promete colo eterno. Tudo mais naquela igreja é masculino, severo, sofrido e austero. Mas era a tal estória, contada à noite que me deixava a pensar: havia na aldeia um homem que tinha um cordão de oiro e que o perdeu. A aflição de ter perdido tal tesouro levou o nosso personagem a cometer uma imprudência: foi à igreja da aldeia, e prometeu, não a deus ou ou ao santo, mas ao diabo que está aos seus pés, que pagaria vinte escudos se o cordão aparecesse. Coincidência ou intervenção maléfica, o facto é que o cordão de oiro apareceu, e o homem cumpriu a promessa: os vinte escudos foram dados ao diabo. Acontece que na igreja existiam caixas de esmolas para os santos, mas nenhuma para o diabo: afinal, quem cometeria a heresia de fazer promessas ao diabo?! Bom, o homem fez a promessa, o diabo cumpriu a sua parte, e dinheiro tinha que lhe ser dado. Não havendo tal caixa de esmolas, o homem optou por pôr os vinte escudos... na boca do diabo! E lá ficaram por longo tempo. ninguém tinha coragem sequer de lhe tocar; e fazer o quê, com dinheiro oferecido ao anjo caído, à incarnação do mal?! A nota permanecia na boca do diabo, incomodando os paroquianos, o padre e até o sacristão. Foi este que cometeu uma imprudência que lhe custou a vida. Contava o pai que o sacristão um dia perguntou ao padre da paróquia o que fazer com aquele dinheiro. A sugestão do padre foi: “pega nessa nota e queima-a”. O sacristão assim fez, e com esse gesto se condenou. Desde esse dia, quando à noite se deitava, escutava uma voz grave que lhe exigia: “quero o meu dinheiro”. Bem que o sacristão tentou esquecer o gesto: à noite lá vinha o diabo exigir-lhe os seus vinte escudos. Não posso, acabou por confessar o homem: queimei-os. “Então, ao menos devolve-me as cinzas”. Mas as cinzas levou-as o vento!” explicava o pobre homem, incapaz de satisfazer a voz do dono. Nem o diabo teve o seu dinheiro devolvido, nem o sacristão voltou a ter paz. Acabou por cometer suicídio, atirando-se para dentro de um poço. Assim era o Portugal dos anos 70 no Oeste de Portugal, a 70 quilómetros de Lisboa! Analfabeto, atrasado, amedrontado, em larga medida preso nas mãos da Igreja, com resquícios medievais ainda bem marcados. Sem estradas, sequer de gravilha, mas apenas carreiros, poeirentos no Verão, atoleiros de lama no Inverno. Mas nem tudo era mau: A ausência das comodidades modernas deram espaço à imaginação e espicaçaram a curiosidade de uma criança que escutava as estórias antigas à luz da lareira onde se cozinhava a ceia do dia, ou à luz bruxeleante de um candeeiro a petróleo. Não havendo televisão para servir estórias pré-feitas e prontas a consumir, eram mesmo as palavras, primeiro escutadas do pai, depois lidas nos livros que davam uma amplitude e liberdade sem limites à imaginação. Eram um tempo em que o desejo de controlo social pela Igreja era tal que alguns dos seus membros não hesitavam em pôr o diabo em pé de igualdade com deus. Desde que o rebanho se mantivesse submisso não interessava dizer que nada se iguala a deus, pelo menos para aqueles que são bafejados pela sorte do mistério da fé.

Dona Alice

Foi um tempo de mudança. Apesar da protecção relativa do lugar onde habitava e de viver nessa altura a minha infância, tudo foi intenso e vivido. A guerra de África era um medo real, muitos jovens de então participaram nela, defendendo um império em ruína e uma população de colonos, muitos deles abastados, contra a exploração dos nativos e espoliação das suas terras e dos seus recursos.
Nem todos regressaram vivos. Foram matar pretos por ordem de um regime que não tolerava questionamentos. Os que regressavam vivos vinham com traumas de guerra que os acompanham pela vida fora. Rios de sangue e negros enterrados vivos são imagens impossíveis de apagar, mesmo que a vida decorresse agora tranquila e vagarosa na bocolidade da aldeia.
Tudo isso chegava até mim como uma estória fantástica. Às vezes escutava a mãe dizer que preferia morrer a ver o seu único filho ir para a guerra. A guerra acabou antes de me tornar homem e a mãe morreu jovem sem ter visto o filho ir para África.
A minha guerra era outra: corria o ano de 1974 e eu tinha 6 anos. Em Abril acontece a revolução, em Setembro eu entro para a escola primária.
A escola não era na altura apresentada como algo bom: pelo contrário, era algo difícil e a professora costumava castigar os meninos. De tabefes a puxões de orelhas até às temidas reguadas, o rol de horrores era-nos apresentado muito antes. Se o objectivo era incutir terror, não havia dúvida que era plenamente conseguido. O único alívio era saber que tinha chegado uma nova professora primária, a d. Manuela. Pelo menos até á terceira classe estaria relativamente protegido da violência da d. Alice.
A fama vinha de longe: d. Alice era a professora da aldeia e havia duas coisas que todos sabiam: uma boa, outra nem por isso. A boa era que os alunos dela aprendiam mesmo, e que quando no final da quarta classe eram levados á Vila para o exame nacional, todos passavam, muitos deles com distinção. A ida á Vila fazer o exame era ela mesma uma experiência terrível para as crianças. Um local diferente, estranho e assustador, aliado ao medo de chumbar no exame. - Se passares de ano filha, prometeram os meus pais á minha irmã Maria, anos antes, terás um bife para o almoço. Passar passou, e o precioso bife de vaca foi comprado, mas a distracção dos pais deixou que o Leão, cão preto do ti Manel o roubasse, a que este se abifasse ao bife que filou. A Maria passou o exame da quarta classe com distinção, mas o almoço foram ovos de rola que o pai tirou do ninho ao pé da vinha. Foi um almoço regado com lágrimas pelo desejo de um bife que o Leão roubou e comeu.

O lado mau era, é claro, a rispidez da professora, sempre disponível para o tabefe e para a reguada.
Por dois anos não passei por tal terror. A d. Manuela era uma jovem doce que raramente nos castigava, e quando o fazia era por temer a colega mais velha que lhe impunha medo, quase tanto quanto o medo que nos incutia a nós.
O 25 de Abril aconteceu, a guerra acabou, voltaram os militares e mais tarde os retornados, e meses depois entrava eu na escola.
D. Alice era uma mulher mais velha: mulher solteira e amargurada, fria e ríspida, autoritária e rigorosa no ensino. Simpatizante do Estado Novo e da velha ordem, ainda que esse mesmo regime lhe tenha roubado regalias e liberdades.
Ser mulher e professora nos tempos sombrios do salazarismo traziam obrigações e limites que d. Alice aceitou e tomou para si. Uma coisa era certa: com ela todos os meninos e meninas aprendiam a ler e a escrever e também a fazer as contas, em especial as temidas contas de multiplicar e as de dividir, a prova dos nove e o terror da prova real pela inversa!
A casa que o estado arranjou para a d. Alice era logo ao lado da escola, uns 100 metros se tanto. Ficava ao lado da estrada e nós tínhamos forçosamente de passar frente à casa para chegar à escola. Antes da professora chegar perfilávamos todos em duas filas, meninos de um lado, meninas do outro. Era uma casa imponente, quando comparada com as casas humildes dos pobres aldeões analfabetos: um primeiro andar, umas escadas externas que levavam ao primeiro andar, vários quartos e dependências, telhado de três águas e um conforto que só os mais abastados da aldeia podiam igualar.
Entrar na escola em ano de revolução trouxe naturais mudanças. Lembro-me da aflição e do medo da d. Alice que nos queria ensinar tendo apenas por material didáctico os velhos livros e canetas vindos do tempo do antigo regime. Mas o regime democrático ainda não tinha tido tempo para reformular currículos e livros, ninguém sabia se Portugal iria virar um satélite da comunista URSS, e a d. Alice mais a d. Manuela lá nos foram ensinando com recurso aos velhos livros salazarentos. "I" de igreja. "O Holofote ilumina o estádio". "O Hábito do monge"... Lembro com fascino as imagens coloridas e as letras que, como por magia, se iam juntando para formar palavras, ideias, contando estórias. Lembro as mesas de estudo em madeira, com tampo inclinado, assento embutido, ranhura para lápis e canetas não rolarem e tinteiro para molhar a caneta de aparo.
A segunda classe mudou tudo: os livros mudaram, perderam a cor e ganharam conteúdos novos. " Uma gaivota voava, voava, asas de vento, coração de mar. Como ela somos livres, somos livres de voar....".
Tempos depois mudaram também as mesas das escola. Os confortáveis tampos inclinados, vindos desde a Idade Média, foram repentinamente substituídas pelas estúpidas mesas de tampo plano, desconfortáveis e nada anatómicas. Como compensação a revolução lá trouxe a energia eléctrica, para nosso conforto e alegria: em vez de apenas a luz natural das grandes janelas, havia agora lâmpadas fluorescentes e supremo conforto, um aquecedor eléctrico que matava o frio gélido de Janeiro.
E a temida terceira classe chegou, e com ela a mudança para as mãos da d. Alice. Não que o regime de medo fosse o mesmo. Não: uns anos antes ela tinha dado uma tareia numa menina que morava na casa frente à sua. Quando a mãe da menina mostrou o corpo dela à minha mãe, cheio de nódoas negras, a minha mãe prometeu que aquilo não ficava assim. Falou com o professor Lamy, homem de Lisboa e ligado ao PS, e semanas depois d. Alice recebia uma inspecção e uma admoestação. Dali em diante os castigos corporais ficaram uma sombra do que foram. Acabaram também as aulas de reforço na casa da d. Alice. Justiça seja feita, quando ela percebia que os alunos tinham dificuldades de aprendizagem levava-os para a sua casa e lá continuavam as lições. Para amenizar o medo das crianças existia a mãe da professora, uma senhora meiga e afável que por gestos lá ia ajudando os meninos. Ali em casa cada criança levava uma cadeirinha ou banco para se sentar e rever a matéria, enquanto não raras vezes a criada da casa preparava chá e torradas para as senhoras, cujo perfume acicatava a fome de algumas crianças que por via do dia longo e dos afazeres se fazia sentir. Mas ali o chá e as torradas eram curtos e não podiam ser partilhados. No Natal sim: d. Alice comprava um grande saco de línguas de gato que dividia rigorosamente pelas crianças, que dessa forma tinham acesso a uma guloseima tão rara. Era a época de fazer o enorme presépio. Íamos ao campo apanhar musgos e líquenes, e com ele a d. Alice fazia o maior e mais bonito presépio das aldeias em redor. Figurinhas de barro pintado recriavam um tempo remoto numa mescla de eras que em nada reproduziram a verdadeira época em que no menino Jesus nasceu. Não importava: nem nós sabíamos o que eram dois mil anos ou o que seria Israel nesse tempo. O que importava mesmo era a folga e a alegria do Natal. Houve um ano, creio que logo na primeira classe, em que a d. Alice inovou: fez um presépio vivo. A Cristina era a nossa Senhora, o Gregório o são José, e adivinhem.... eu como menino Jesus. Lembro o horror e a vergonha de ser obrigado a estar deitado nas palhas dentro de uns ridículos colants. Imaginem: só meninas usavam tal peça de roupa, e de repente ali estava eu naquela figura! Mas os sonhos de abóbora que uma mãe levou e que comemos no fim da peça...ah, esses eu nunca esqueci! Eram quase tão bons quanto as filhoses que a mãe fazia na véspera do Natal.
Desta forma a entrada na terceira classe foi muito mais amena para nós. Ainda assim não me livrei de algumas reguadas. Mas poucas. Nunca fui criança rebelde ou mal educado. Apanhei por me ter esquecido de fazer os trabalhos de casa para as férias. Distraído, só peguei neles na véspera já à luz do candeeiro a petróleo. Não só não consegui fazer todos os trabalhos, como ainda por cima sujei a sebenta com uma nódoa de azeite. No dia do regresso às aulas já sabia que iria apanhar. E apanhei mesmo!
Todos nós sabíamos os sinais de cor: os cadernos eram levados no fim do dia para revisão: se no dia seguinte enfileirados para entrar na sala a d. Alice viesse com ar zangado e rosto vermelho era certo que no mínimo vinha tabefe a seguir. As borrachas de apagar a sebenta estavam sujas? Tabefe. Éramos apanhados a esfregar as ditas borrachas nas calças para retirar o negro dos lápis? Tabefe. Se caía um pingo de tinta das temíveis canetas de aparo ou dos tinteiros que sujavam os cadernos ou a prova? Tabefe ou reguada. Se estávamos a desenhar uma letra e não levantava-mos a caneta para desenhar a perninha do A ou do D, tabefe! Era assim mesmo. Um dia a Lídia foi chamada ao quadro para resolver um problema de aritmética. O medo era tanto que se mijou toda.
Um dia quis bater com a régua na minha irmã Fátima. Só que ela teve coragem: escondeu as mãos e afrontou a professora com olhar desafiador, fazendo-a recuar.
Um menino era esquerdino? Coisa sinistra, era obrigado a escrever com a mão direita. A minha outra irmã Marília era ligeiramente disléxica: durante anos dizia "estogamo" em vez de estômago. Não apanhou por isso, mas teve que se esforçar.
Se o frio apertava no Inverno - e como aperta no clima do húmido do Oeste - e a criança levava roupa interior vestida para se proteger era mandada de volta a casa para se trocar com o epíteto de porca. Eram 4 quilómetros a pé para cada lado, a pé e por caminhos de terra batida.
E hoje? Hoje a casa está em ruínas. Nunca entendi porque é que aquela bela casa ficou desabitada depois da aposentação da professora. Havia ao lado um forno de cal abandonado. A terra é rica em calcário e o velho forno de cal lá permanecia, usado como lixeira. Era uma bonita casa que contrastava com a dureza de quem a habitava.
Hoje vivemos outros tempos. Hoje ninguém pode bater numa criança. Felizmente. Hoje o sistema só peca por se ter esquecido que as crianças são frágeis e por isso devem ser protegidas, mas que os adultos são quase tão frágeis quanto crianças, e que a eles ninguém os protege. Hoje os papéis não se equilibraram: inverteram-se, e temos agora muitas crianças feitas tiranetes. Elas sabem que ninguém as pode castigar e, como crianças que são, tornam-se carrascos de professores e de auxiliares. O círculo rodou 180°!
Todos os tempos têm as suas dificuldades. A contemporaneidade também. Mas nada se pode comparar aos tempos sombrios da "outra senhora".
Nada no tempo do Salazarismo que ainda vivi merece ser admirado. Foi um tempo de miséria medo e repressão que até na escola se sentia. Salvou-me o carinho e o calor da família, e as saúde e força que a juventude não permitiram derrubar.

Sina

"Tão Zé, sempre sozinho? Porque nunca arranjaste uma mulher? Olha que uma companhia só te faz falta. Ainda podes encontrá-la!"

A pergunta bateu seca, dura como um murro directo no estômago. Já devia saber de cor e salteado a resposta estudada, mas essa aqui era inútil. Desde menino que sabia a outra resposta, mas há verdades que nunca podem ser ditas. Ali, como sempre. Do alto dos seus 70 anos, o mesmo olhar fechado, o rosto de pedra, cabisbaixo, a velha dor de sempre, calada, renegada, inquieta, e o peso de um segredo que escondia no coração cansado. Não, ao primo Manel não adiantava mentir, mas também não podia falar-lhe a verdade. Aquela que ambos conheciam desde meninos, quando a vida se revelava no esplendor da infância e adolescência. Era o tempo em que tudo parecia possível e puro, vidas diante dos olhos acabados de abrir, inteiras, cheias de promessas e de possibilidades. Anos e anos infindáveis com a felicidade ali na frente. Era como a linha do horizonte que ambos viam no mar enquanto corriam descalços pelos caminhos da aldeia, às vezes empoeirados, outra vezes enlameados. Aquele mar hipnótico, que em fins de tardes ficavam ambos a fitar, o sol gigante, alaranjado, afogando-se lentamente numa vastidão de águas luminosas. Bastaria andar um pouco, até à praia, depois umas remadas, algum esforço e essa linha seria atingida. Mas esses passos nunca foram dados e nenhum barco surgiu que pudessem remar até essa linha. Os 10 quilómetros até ao mar cedo se revelaram-se um muro intransponível, assim como as obrigações que a vida impunha a homens que nunca puderam ser meninos. A linha continuava lá mas os caminhos de terra batida, os pés descalços e a obrigação de arrancar o sustento à terra cedo prenderam passos e sonhos.

Zé tinha uma sina: toda a gente sabe que quando nascem sete mulheres seguidas numa família, coisa nada impossível naquela época, uma delas seria bruxa. Fado ruim, mulheres que tinham pacto com o diabo e que à noite benziam os seus homens com o cu, garantindo assim que eles não acordariam até que regressassem das suas andanças por caminhos e encruzilhas esconsas, acompanhadas por outras bruxas e sob domínio do diabo, em orgias de sexo. Havia formas de quebrar o encanto. Uma delas, bem simples, era uma das sete irmãs ser madrinha de outra. A santa madre igreja assim o consentia, para bem do mundo que desta forma se livrava de bruxas, por definição más e com pacto com o demo.

Outra forma de quebrar o feitiço era um homem passar por acaso à noite onde as bruxas dançavam nesses cruzamentos, vagando como luzes de pirilampos. Se um homem passasse ali com uma junta de bois ou um burro e picasse uma delas com o aguilhão das bestas, imediatamente a bruxa cairia a seus pés, nua como veio ao mundo, já que era dessa forma que o anjo caído a queria para si. O quebranto seria quebrado e as outras davam-se a conhecer. Mas se aquela que tinha sido picada e por isso perdido o quebranto se via livre do fado, as outras permaneciam bruxas e tratariam de matar o homem se ele algum dia revelasse quem elas eram!

Zé é nome de homem, já se vê. Mas o Zé teve a infelicidade de ter nascido numa sequência de sete irmãos, e por isso foi fadado. Os pais não quiseram quebrar esse fado fazendo um dos filhos ser padrinho de outro, e calhou ao Zé cumprir a sua sina: Zé era lobisomem e os pais carregaram para sempre o peso de não terem quebrado a sina do filho.

" - Que queres tu que te diga Manel, se tenho esta sina?". Assim mesmo o escutei, enquanto me fingia de distraído com uma qualquer brincadeira de criança. Mas o espanto ficou-me marcado: um homem acabava de confirmar diante de mim um dos receios mais primitivos, havia mesmo lobisomens! Assunto de homens sérios e de tino, desta forma eram iniciados os meninos da aldeia nos mistérios do mundo.

Convém aqui dizer que a sina de lobisomem em nada se assemelha à maldição das bruxas: ao contrário destas, ser lobisomem é apenas uma sina que deus dá, mas não há nisso qualquer pacto com o mal.

Havia sinais inequívocos sobre o fado do Zé: um lobisomem tem sempre as sobrancelhas pegadas. O Espaço sobre o nariz nunca está despido, também aí os pêlos nascem. Outro sinal era possuir as nozes dos dedos calejadas por conta de trilhar os caminhos das redondezas em noites de lua cheia, nu e transformado num animal. Sabe-se que um lobisomem ao sair de casa se despe, deixando as roupas viradas do avesso, e ao encontrar o primeiro rasto de um animal nele se espoja, transformando-se nesse animal. Um episódio bizarro traçou definitivamente a sina do Zé. Jovem na força dos 30 anos, numa noite de luar acordou na sua cama, nu como era seu costume dormir. Um frémito, uma febre, uma urgência tomou-lhe conta do corpo e do espírito. Seriam umas quatro da madrugada. Levantou-se da sua cama de eterno solteiro e saiu à rua nu, tal como veio ao mundo. Fosse pela visão do luar sedutor, fosse pela força da sua juventude, ou mesmo pela ausência do corpo tão desejado, o espírito toldou-se-lhe e teve uma violenta erecção. Quis o destino que àquela hora morta viesse a Maria pelo caminho de casa e o visse naqueles preparos! A Maria ali, àquela hora?!

Estacaram os dois frente a frente, o Zé sem reacção, por um segundo, por uma eternidade, a Maria entre o pânico e a vergonha. Não trocaram uma única palavra, viraram costas um ao outro, e o episódio parecia ter terminado ali. Mas a Maria não esqueceu, tal como o Zé. Maria tratou de falar com uma amiga sobre o que presenciara, com o pacto de silêncio que obrigava a amiga a guardar segredo. Ora é bem de ver, a função do segredo não é o de ser guardado. Pelo contrário, ele tem a função oposta de fazer circular as estórias obrigando toda a gente a fingir que não sabe. Não havia que enganar, o Zé era mesmo um Lobisomem e preparava-se nesse momento para sair e cumprir o fado. É nessa altura que uma mulher pode quebrar o encanto: tem que chegar à roupa dele e virá-la do direito. Mas ela corre um perigo enorme, já que o lobisomem presente que o está a ser feito e imediatamente regressa para atacar a mulher com a ferocidade do bicho em que se transformou. Como é de supor, nem a Maria nem nenhuma mulher alguma vez se afoitou para quebrar a sina do Zé.

Havia ainda outro indício: o Zé tinha comprado um pequeno terreno na periferia da aldeia, onde se isolou. Fez aí a sua casa, e num pedaço anexo de terra arável e com água fez uma horta, um pomar e um jardim. Juntamente com outros pedaços de terra nas redondezas arrancava da terra o sustento, jamais tendo conhecido a fome. Para maior desconfiança da aldeia, o Zé nunca fazia mal a qualquer animal: já se sabe, ser homem significa ter coração duro e desapiedado. Os animais inferiores eram para ser dominados e comidos. Ora o Zé vivia rodeado dos seus bichos que tratava com carinho: o burro, uma matilha de cães e um número infindável de gatos. Jamais alguém o viu maltratar qualquer ser vivente: nem um pardal que lhe roubava o trigo por alturas da sementeira ou da colheita, nem o melro que lhe picava a fruta por alturas do Verão. Nada: no coração do Zé não cabia maldade, e se havia ás vezes algum fel, não nasceu ali, foi plantado pela aldeia que aceitava mas não lhe perdoava a sina e que o Zé evitava. Durante o dia preferia ficar em casa a jardinar, outros assuntos tratava-os à noite, trilhando caminhos que evitavam a aldeia.

O Zé isolou-se como tantos outros homens por esse Portugal, por gerações e gerações.

Sim era verdade, o Zé tinha mesmo uma sina. Todos jurariam na aldeia, ainda que em vozes sussurradas, que tal era verdade. Mas a verdade tem graus, e noutro grau todos sabemos que homens não se transformam em bichos nem saem em noites de lua cheia uivando ou grunhindo. A sina do Zé era outra: crime inominável e pecado sem perdão, mas a que deus ou a natureza fadara: o Zé era homossexual. Jamais sentiu desejo ou se interessou por mulheres, e tal sina podia ser aceite, mas tinha que ser simbolicamente transformada. A natureza selvagem, o sexo real ou imaginado, criminoso, estéril e inútil à reprodução social não tinha assento no mundo de então. Antes lobisomem, fera selvagem com alma de homem, do que simplesmente homem que se interessava por outros homens.

Da sua casa o Zé continuava a ver a linha do horizonte e o mar de sempre. Morreu velho, com um gato no colo e rodeados dos seus cães, enquanto o sol mergulhava na vastidão do mar. No seu último suspiro sonhava que atingia finalmente a linha do horizonte. Que a felicidade prometida quando pela primeira vez fitou aquela vastidão de águas finalmente chegara. Que agora sim estava acompanhado pela presença que por toda a vida desejou.

Quando partiu o velho gato saiu vagarosamente do colo do dono. Ele, melhor do que qualquer pessoa, sabia que o dono entrara na derradeira viagem. Fez o seu trabalho. Retribuiu ao seu dono o calor e conforto que sempre recebera, ajudando-o a partir sereno.

Nunca saberemos se os anjos existem. Nunca saberemos de que se disfarçam quando vêm à terra. Nunca saberemos os segredos insondáveis do mundo, onde ás vezes a natureza manda uma coisa e a moral manda outra.

Recado aos que negam a ciência

Em memória de Marília Caldeira, de quem não voltarei a escutar a frase reconfortante: “mano, eu entendo tudo o que escreves”.

"Sabem do que é feita a ciência, meus amigos?”

Sentem o quanto dói construir o saber?

A ciência é feita de tentativa, erro, busca de conexões lógicas, teoria, hipótese, método, factos, medidas, aferições e inferições, validação por pares, ensaios, observações, angústia, desalento, negação das paixões, negação do Ego, abnegação, sacrifício, e sobretudo muita solidão.


Quando abrem um livro de Física, de Biologia ou de Astronomia, além da glória dos nomes que triunfaram num teorema, numa fórmula matemática, num modelo cosmológico, descritos numa linguagem simples e elegante, sentem a angústia e a solidão de quem sacrificou a vida para nos deixar essa dádiva?


Na construção da ciência vejo Marie Curie a morrer de cancro, por conta do material radioactivo que estudou durante anos. Vejo Newton dentro de um quarto escuro a tentar recuperar a visão, depois de se ter exposto ao exercício perigoso de observar o Sol directamente. Vejo Darwin angustiado pelo medo de expor à sua esposa, tão religiosa, a sua teoria da Evolução das Espécies. Vejo a sociedade londrina a escarnecer, do alto da sua ignorância atrevida, a imagem do “Homem descender de um macaco” Amesquinhavam a grandeza de Darwin por conta da mesquinhez do seu próprio Ego. Vejo Hipática a chorar a bela biblioteca de Alexandria, destruída numa pira infame, ateada por quem não queria outra verdade que não a “verdade” do seu delírio. Sinto o crepitar da madeira e dos papiros queimados, levando consigo a vida de Hipática e o saber do mundo antigo! Sinto os passos cansados de Erastótenes, que mediu sombras e distâncias e com isso determinou o tamanho da Terra.
Vejo Kepler angustiado, a mendigar as observações do mestre Tycho Brae, triste por ter que deixar de lado o seu sonho de esferas perfeitas, rendendo-se à evidência das observações e dos seus cálculos que demonstravam que os movimentos dos corpos celestes são elipses e não esferas.
Empolgo-me com a coragem quase insana de Edward Jenner, que arriscou a vida do seu próprio filho inoculando nele a varíola bovina. Com isso descobriu a primeira vacina que erradicou a temível varíola humana, doença que matava milhões de pessoas. Hoje é um dos triunfos da medicina, a erradicação de uma doença infecto-contagiosa devastadora.


Vejo Albet Einstein no final da vida, pacifista, contrário à bomba atómica que ajudou a criar.
Sinto o desalento de Clair Patterson, que lutou uma vida inteira para demonstrar que o chumbo é venenoso, tendo por colossal inimigo a indústria petrolífera. David contra Golias.


A ciência é feita de tentativa e erro, de solidão e angústia. Ela assume os seus erros, a sua dificuldade em arredar o Ego do seu trabalho. Ela aceita que um determinado modelo possa um dia ser melhorado por outro mais elaborado ou mais abrangente. Einstein não negou Newton, acrescentou-lhe algo.
No século XIX deitaram-se colecções inteiras de meteoritos para o lixo, porque a incipiente ciência da altura negava a possibilidade de haver queda de pedras vindas do céu. Sim, a ciência e os cientistas não são imunes à crença. Ela é feita por homens e por mulheres comuns que fazem coisas incomuns, e que ás vezes podem ceder à tentação: uma medida adulterada de emissões de gases poluentes aqui, uma “medicina alternativa” ali, uma medicina “quântica” acolá, são tentações que o “vil metal” coloca amiúde no caminho de muitos investigadores.
A ciência não oferece verdades absolutas, os seus modelos são quase sempre provisórios.
A ciência não tem respostas aos porquês da vida, mas é excelente a responder aos “comos”: como funciona a Biologia, a Química, a Astronomia, por exemplo.
Claro, ela assume que não pode responder aos “porquês”: porque existimos, porque sofremos, de onde viemos, para onde vamos. Este é um campo que a ciência deixa para filósofos ou clérigos.


Foram necessários milénios para erguer o edifício elegante e sólido da ciência. Milhares de homens e de mulheres sacrificaram as suas fantasias mais doces em prol de uma verdade sólida mas cruel. Se hoje contamos com a medicina ou a tecnologia moderna que nos proporcionam um bem-estar que gerações inteiras apenas puderam sonhar foi porque milhares de pessoas tiveram a coragem de olhar o mundo como ele é, e não como gostariam que ele fosse. A magia da ciência talvez seja essa: foi por ver o mundo dessa forma que o puderam afinal transformar em algo mais próximo daquilo com que sonharam, sem na generalidade das vezes terem beneficiado com isso. Se hoje temos medicina nuclear, também a Marie Curie o devemos. Ela deu a sua vida para que outros hoje vivam mais e melhor.


Se acham que ser cientista é apenas o momento de glória do investigador que vai à televisão descrever a sua descoberta ou o seu triunfo, desenganem-se. A ciência, que tu ás vezes renegas por medo da sua complexidade e por desejo de que o mundo seja aquilo que tu queres que ele seja e não aquilo que ele é, é feita de trabalho árduo, solidão e desalento, onde o cientista muitas vezes cai e se reergue!


Quando negas a ciência, desdenhas de milhares de vidas que se sacrificaram por ti e pelo teu bem-estar. Quando recusas uma vacina por medo e ignorância retiras significado à vida e ao trabalho do investigador, e colocas em risco a tua vida e a da comunidade apenas porque o teu medo falou mais alto do que a razão.


Os pseudo-cientistas e charlatães que te vendem ilusões de produtos naturais “bons” contra produtos químicos “maus”, “embrulhadas” em linguagem pseudo-científica, vivem do teu medo e à custa de cada homem e mulher que se sacrificou para determinar como o mundo físico realmente funciona e para te proporcionar as ferramentas que te permitem viver melhor do que a maioria da humanidade alguma vez sonhou viver! “Homeopatia” ou “Medicina quântica” são apenas engodos disfarçados de ciência. E se a mezinha da tua avó funciona - e tantas vezes as mezinhas dos antigos funcionam! - só é necessário passar essa mezinha pelo crivo da ciência. Se se comprova a eficácia, passa de mezinha a medicamento. Foi esse o processo de síntese da aspirina e de milhares de outros compostos com eficácia médica comprovada!
Se entenderes o que é a ciência e o seu método, a sua honestidade, validade e força, honras os milhares de homens e de mulheres que trabalharam em prol desse conhecimento por muitos séculos.


Quando entendes e aceitas a validade do seu trabalho dás sentido e eternizas essas pessoas!


Quando compreendemos e aceitamos a verdade dos factos e com eles conseguimos fazer um mundo melhor, damos sentido à vida e à angustia solitária de cada cientista, e com isso damos sentido e dignidade à nossa própria existência!


Porque a ciência é a mais sólida construção do espírito humano, perante ela o delírio e o Ego repudiam e renegam, mas só o fazem porque sabem que não detêm a razão nem a verdade dos factos. É sobre a verdade que a Humanidade se pode erguer, construir e ganhar significado, longe da lama primordial de um lago primevo de onde os nossos ancestrais saíram a rastejar há milhões de anos.
Se tivermos a coragem de sacrificar os nossos sonhos mais doces em prol de uma verdade cruel, no fim temos como prémio as ferramentas para mudar essa realidade angustiante. Esse é porventura o maior triunfo e a maior dádiva da ciência!