sábado, 27 de março de 2021

Das Crenças

 

Religiões: a pedido de "algumas famílias". É assunto complexo e espinhoso que tenho evitado activamente.
Vamos antes de mais à definição que arranjei para religião: "a religião é um movimento identitário, de pertença a um grupo de crença, ou seja, um grupo que quer algo, necessariamente bom, melhor e oposto à realidade aflitiva de enorme sofrimento físico e espiritual em que todos existimos".

A religião é baseada em textos e preceitos de "inspiração divina", feita de textos "sagrados", "verdadeiros" (porque emanam de deus), escritos por profetas que se reconhecem a si mesmos como tal, e porque são reconhecidos pelo grupo, como alguém próximo do divino, ao contrário do comum dos mortais. A religião será pois a resposta social e grupal a perguntas que emanam da metafísica.

Sempre presente no espírito humano, a metafísica não tem outras resposta que não aquelas que encontramos dentro de cada um de nós. Ao nível do individuo a metafísica desagua na espiritualidade. Ao nível do grupo a espiritualidade individual de cada um é apropriada por supostas e entrepostas pessoas que se arvoram mais próximas do divino. Assim sendo, a religião é a apropriação da espiritualidade de cada individuo com fins de controlo social da reprodução (quem pode fazer filhos com quem) e da produção de bens (quem é dono do quê, quem pode dividir ou aglutinar meios de produção, como seja a terra ou a energia.

O preço a pagar pela necessária pertença ao grupo (o Homem é um ser social, só é homem no seio de outros homens) é a perda de autonomia, de independência da relação que cada um de nós necessariamente tem com a metafísica transformada em divino. Não é o foco desta publicação, mas é bem de ver, religiões não me assistem. Muitos desses supostos intermediários com o divino terão bem menos espiritualidade do que qualquer comum mortal, mas têm sim um enorme desejo de poder e de controlo social. Religião é grupo, espiritualidade é individuo. religião é moral, espiritualidade é ética, religião vem de fora, espiritualidade vem de dentro.

Religião não questiona escrituras, mestres ou profetas. Espiritualidade vive na dúvida. Religião dá certezas falsas. espiritualidade dá dúvidas saudáveis. Basta pensar no catolicismo: A Terra no centro, o homem feito à imagem e semelhança do seu único e verdadeiro deus. Quando a ciência finalmente se ergueu vimos Copérnico a retirar a Terra do centro levámos com a primeira machadada do nosso ego.

Não somos centro de nada, mas queremos desesperadamente ser. Mas ainda era-mos feitos à imagem e semelhança de deus. Darwin veio demonstrar a degradante condição humana, de sermos descendentes de um símio ancestral. Mais tarde o Iluminismo postulou o homem como ser racional, regido pelas regras da inteligência e da razão. Freud demonstrou que tal não é verdade e que o Ser humano se rege muito mais por impulso do que pela razão. "O ego não é rei na sua própria casa".

Aqui chegados temos uma visão de um mundo cheio de tecnologia, triunfos proporcionados pela ciência e a técnica, um bem-estar inimaginável para milhões de gerações antes de nós. E no entanto, não parece que sejamos hoje mais felizes do que as gerações que nos precederam. A solidão, a angústia, o medo, o caminho inexorável em direcção à morte não encontram conforto no oceano de tecnologia em que todos vivemos mergulhados. A estes juntam-se outros problemas. Na ordem do dia estão as questões ambientais e um planeta enxague e a necessitar de cuidados intensivos rápidos.

A um mundo complexo, vasto, assustador, onde impera a solidão digital e o egoísmo narcisico, encontramos respostas nos velhos demónios, disfarçados de deuses: é hoje inegável um movimento de retrocesso em direcção aos fundamentos das religiões, ou seja, aos fundamentalismos.

Um pouco por todo o mundo, do midwest americano, ao Brasil, até bastiões tradicionais dos Islão, as religiões estão de novo a ganhar força. Visões diferentes do mundo, ás vezes antagónicas, as religiões facilmente descambam no exacerbar das diferenças e no apelo a guerras "santas". Acontece que nenhuma guerra é santa. A lucidez e a coragem de enfrentar a dúvida, o medo, a diferença, são muito mais difíceis de suportar do que as certezas fantasiosas e delirantes, egóicas, oferecidas pela religião.

As religiões instituídas concentram muitas das energias que movem a humanidade. O desporto e a política são outras formas colectivas de controlo e canalização das forças que movem grupos, países, blocos! Neste regresso em força das religiões encontramos sempre os mesmo motores: o medo, o populismo básico, a demonização do "outro", um "nós" "puros", contra um "eles" "impuros". As identidades grupais constroem-se sempre entre um "nós" bons e um "eles" maus. A Europa tem um velho conflito latente entre a sua matriz cultural, e outra grande civilização nascida na margem sul do Mediterrâneo. construída sobre dois eixos fundamentais, a Europa tem em Atenas o foco da razão, da filosofia, da ciência, do Homem pelo Homem. Mas a Europa tem um segundo eixo de suporte: Jerusalém. Essa deu-nos a religião, a moralidade, os profetas, a santidade, a aversão judaica ao corpo e ao sexo. E no entanto a Europa singrou numa cultura que se tem construído sobre enorme violência, dentro das suas fronteiras e levada para fora delas, mas apesar disso um triunfo, das liberdades, do respeito, da figura "sagrada" do indivíduo, dos direitos do Homem. Na sua vertente religiosa a Europa bebe dos judaísmo através do Cristianismo. Religião erguida sobre o livro sagrado, a Bíblia é uma compilação de textos e de preceitos que leva milénios de construção.

Distintos entre si e muitas vezes até contrários, a bíblia tem duas divisões principais: o velho testamento, comum às 3 religiões abraamicas: Judaísmo, Islão e Cristianismo têm na figura de Abrão, e no deus único um denominador comum. O que temos assistido ao longo dos séculos é a oscilação das fronteiras entre cristandade e islamismo. Durante séculos o Islão subiu pelo sul da Europa, tendo ocupado por longos séculos a Península ibérica. Rechaçados paras as suas terras ancestrais, o Islão sempre sonhou com a reconquista do Al-andaluz, e a criação de um califado. Enquanto a Europa e a cristandade se abriam ao mundo, (a bíblia é o livro mais traduzido do mundo, existindo traduções em mais de 600 línguas), o Islão é fechado sobre si mesmo. No Islão não se promove a tradução das escrituras. O Alcorão deve ser lido na língua sagrada da revelação. O cristianismo passou além da leia da proporcionalidade ou lei de talião, "olho por olho, dente por dente". No cristianismo passou-se adiante: promove-se o perdão, o dar a outra face, o amor acima da justiça. O Islão permanece ainda demasiado agarrado à velha lei de talião.

Em muitos povos islâmicos a vingança é social e culturalmente aceite e bem-vista. Não quero fazer comparações entre profetas, não quero comparar Cristo com Maomé: mas sei a que matriz cultural pertenço. Aceito a cultura de outras civilizações, amo e respeito a humanidade no seu todo, mas conheço a escala de valores. Sou Europeu, de matriz cultural europeia, até cristã, livre, respeitadora de povos e de indivíduos. Não quero entrar nas velhas dinâmicas da lei da proporcionalidade, mas não ignoro a tensão entre cristandade e islamismo. Não ignoro que se permitam construções de templos diferentes, por exemplo mesquitas na Europa, quando é impossível construir igrejas na Arábia Saudita. Fechado sobre si próprio, o Islão não aceita nada menos do que a submissão: é isso que significa a palavra "Islão". Submissão total, incondicional ao seu profeta e ao seu deus "único".

Um não islâmico pode entrar na Arábia Saudita, mas não pode entrar em Meca ou em Medina. É por isso que reconheço superioridade ética à cultura de matriz europeia. Pessoas podem viver como querem, mas no respeito mútuo. A Europa demonstra superioridade quando aceita que se construam templos de diferentes religiões no seu espaço, quando o mundo Islâmico o combate ferozmente. Aceitar culturas é uma coisa, impor culturas é outra. ninguém está livre de responsabilidades históricas nesses processos, mas a Europa de hoje é muito mais tolerante e respeitadora do indivíduo do que outras confissões. A Europa há muitos anos separou religião do estado, no Islão essa divisão, tão necessária, ainda não aconteceu.

Seja bem-vindo quem vier por bem, mas no respeito fraterno e mútuo. Não vejo a humanidade num patamar capaz de rechaçar as religiões para os livros de História. A metafísica condena-nos à religião, pelo menos nos grandes números que definem povos. Estou disponível para aceitar tudo e todos, mas marco uma fronteira clara: a minha forma de pensar e de viver não é questionável. A minha crença ou falta dela é assunto exclusivamente meu, e ninguém tem o direito de se pronunciar sobre isso. O meu corpo é exclusivamente meu, e não legislável nem policiavel. O caminho é para a frente, não aceito retornos à idade média, ainda que a nadar em tecnologia.

Não reconheço santos nem profetas, nem sequer deuses "únicos" e "verdadeiros". Sagrada, só mesmo a liberdade que se vive no meu mundo. Aberto ao multi-culturalismo, mas não a colonialismos de qualquer ordem. Temos que manter a nossa forma de viver e de pensar, abertos ao mundo, mas não disponíveis para prescindir das conquistas que tantos nos custaram a obter. Penso que a Europa está a gerir a sua relação com outras culturas de forma inteligente.Tem que ser por aí, de outra forma seria o regresso às guerras santas, e essas não interessam a gente livre.

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