quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Gaius Julius Lauros


De regresso às origens.
Esta é a velha estrada real, tal como os meus antepassados a chamavam, e que passa pelo Casal Caldeira. Recordo o meu pai a explicar que esta era a estrada original, e que as outra estradas que trilhávamos então eram muito recentes.
Não é difícil imaginar gerações sobre gerações a passar neste local. Há 2000 anos Roma conquistou a Ibéria. Eram uma província remota, sem a importância ou opulência das cidades da península itálica, mas ainda assim existiam algumas cidades importantes.
Plínio-o-velho deixou registo da existência de uma dessas cidades algures entre Leiria e Lisboa, mas sem registo preciso da sua localização.
Há 25 anos a construção da auto-estrada 8, ao passar por Óbidos descobriu finalmente a cidade perdida : Eburobrittium. Conquistada a terra pelos romanos a partir do mar, através de um braço que entrava pela terra até ao local, era servida por porto de mar, e só foi abandonada na idade média por causa do assoreamento e por não ser muralhada, o que a fragilizou no caos do fim do império. Óbidos, com o seu castelo e muralhas, ali ao lado, ocupou o lugar da velha cidade romana.
Foi nesta cidade que viveu Gaius Julius Laurus, Senador Romano. Terá sido este homem quem construiu a sua villa a um quilómetro de distância do casal, no vale lá em baixo. A Quinta da Moita Longa, com o seu bosque e os seus loureiros, junto ao rio Gaia.  No topo de outra colina aqui ao lado fica a aldeia de Miragaia, (olhar o Gaia), e na igreja da aldeia está a pedra tumular do velho senador, reaproveitada, como foi norma por milhares de anos: a reutilização de pedras trabalhadas, tão difíceis de obter.

 A Lourinhã e o Casal Lourim  terão sido outras possessões de Gaius Julius Laurus, sendo então a Lourinhã terra alagada e pantanosa. A villa seria mesmo a Moita Longa, ou seja, a mata longa que vinha de Óbidos até aqui ao vale, a São Bartolomeu dos Galegos e ao Toxofal de cima. Não é pois difícil imaginar o cônsul de Roma passar por aqui a cavalo com a sua comitiva, numa viagem de algumas horas. Quase dá vontade de o saudar com um "Avé Gaius Laurus". Mas não, os olhos que agora miram esta paisagem são outros, os espíritos que emprestam consciência a este local são os de hoje.
O velho senador há muito atravessou o Estige, Caronte terá recebido a sua moeda, guardada sob a língua do morto, para pagar o frete. Ainda assim nem tudo se diluiu no pó: as velhas pedras da Moita Longa sussurram estórias de conquistas e de civilização, ou de versos cantados em latim ao som da lira ou do alaúde sob a luz do archote, enquanto se queimava nos incensários rosmaninho e alecrim que perfumavam o ar.  
 Estórias de gládios e de povos nativos, num movimento e num tempo longo, onde tudo parece condenado ao esquecimento, mas onde ainda hoje se escutam ecos desse passado distante. Não é pois difícil imaginar esse tempos. Um bosque denso de carvalhos, azinheiras e sobreiros, lobos a uivar na noite negra sob um céu polvilhado de estrelas, ursos imponentes, cervos e lebres caçados pelos soldados, pelos escravos e pelo senhor, as mulheres da família, as crianças a brincar, como sempre pelos séculos dos séculos. A tua saudação chegou tarde, Gaius: este "Avé" desencontrou-se de ti dois mil anos.
 Mas hoje, ao olhar a velha estrada real, o seu passado glorioso de guerras e conquistas, consigo imaginar-te, sóbrio e altivo no teu cavalo, ora atento ao caminho, ora pensativo nas ocupações da gestão de terras, vilas e cidades. Hoje ainda existe Miragaia, mas o velho Gaia ganhou outro nome: rio Toxofal. Nas suas margens subsistem as poucas árvores nativas que nos falam da outrora bela mata longa. São elas, junto com as pedras quem me sussurra esse passado tão remoto, mas que hoje desfila no meu espírito como um filme realista. É esse o filme que me permite agora esquecer por momentos o horrível deserto de eucaliptos que hoje ocupa o lugar do outrora verdejante bosque nativo, rico de vida e de diversidade. Avé, Gaius Julius Laurus.

Luz trémula

 Luz trémula



SÉRGIO CALDEIRA·SEGUNDA-FEIRA, 12 DE AGOSTO DE 2019·1 MINUTE

50 anos. Meio século. Uma eternidade. Um sopro. Havia o cheiro do petróleo, a mecha curta durante toda a noite a queimar o suficiente para haver a ténue luz de presença que espantava o negro da noite. Nesses tempos a electricidade era uma miragem longínqua e a noite era absolutamente negra quando não havia lua. Havia os vidros farruscos para lavar com cuidado no dia seguinte, havia o apito do pitrolim que vinha vender o petróleo, o azeite, fósforos, massas alimentícias e coisas de mercearia. Havia milhares de pirilampos a bruxelear nas noites quentes de Agosto que apanhávamos às centenas, e havia a alegria da infância breve e feliz onde faltava tudo, excepto o importante: colo e comida no prato. Correr descalço sobre o restolho áspero era pura brincadeira, nem cócegas fazia, e curou o pé chato. Meio século: uma eternidade. Um sopro. Um rol de recordações e de saudades que fazem parecer doce o cheiro de petróleo queimado.

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