sexta-feira, 26 de março de 2021

Natal


 

Lembro-me como se fosse ontem: a mãe tinha ido à feira do Bombarral. Nesse dia as figurinhas da sagrada família vieram com ela. O básico dos básicos. O menino Jesus, a virgem Maria e o São José.

Nesse Natal tudo o mais foi improvisado: a cabana, feita de pedaços de cortiça, o chão feito de musgo, e o meu encanto de menino, a mirar as figurinhas de barro pintado em tons coloridos. De um lado a Maria, do outro o José. Junto ao menino a mãe colocava a searinha do menino Jesus: um pires com terra onde se semeava um punhado de trigo tirado da arca.

Oferecíamos ao menino o pequeno sacrifício de alguns grãos, na esperança de que o menino Deus retribuísse esse sacrifício no próximo Verão com uma colheita que garantisse o pão nosso de cada dia. Oferecíamos também o sacrifício da chama sagrada, uma pequena candeia de azeite, que iluminava a sagrada família e aquecia o menino, essa mesma chama que também pode ser a das velas de cera, produzida pelas as laboriosas e preciosas abelhas. Porque aos santos, ao Divino e aos mortos não se deve oferecer outra luz e outro calor que não o do azeite ou da cera.

Havia também o profano: sobre a cabana colocávamos um pinheirinho, e à falta de bolas coloridas, impossíveis de comprar, havia bugalhos embrulhados em pratas de chocolates que outros comiam. Eras tu e as manas quem passava o ano a coleccionar essas pratinhas, cuidadosamente alisadas e guardadas entre as folhas dos livros da escola, e que serviam para embrulhar os bugalhos que ficavam coloridos e bonitos, pendurados no pinheiro.
Havia também canções à volta do presépio. Na noite de Natal havia a ceia, pequenas prendinhas, o pai cansado no fim de mais uma jornada na terra, e a mãe à volta da lareira a fazer filhoses. Pouco depois vieste menina trabalhar para Lisboa, e foi contigo que o presépio foi crescendo ao longo dos anos. Assim que a mãe dizia que a mana vinha de Lisboa passar o Natal, lá ia eu sentar-me no valado junto aos eucaliptos, a olhar a estrada da Feteira, de onde te avistava ao longe, lá em baixo.
Nem Lisboa, nem distância alguma consegui jamais cortar os laços da família plasmada nas figurinhas de barro. A pouco e pouco se construiu o presépio: num ano o burrinho e a vaca, símbolos da força e do alimento animal fundamental também para nós, os reis magos, a prometer o poder e a glória ao menino, vindos de longe para oferecer ouro, prenda digna de reis, incenso, perfume sagrado oferecido aos santos, e mirra, que se oferecia aos mortos, antevendo o sacrifício de Cristo 33 anos depois.
Mas o Natal é vida, é calor e luz numa altura em que impera o frio e a escuridão do Inverno. É assim, sempre foi assim neste sopro de vida que para mim já leva 50 anos. Para ti, mais uns quantos. Não importa o tempo, o espírito do Natal és tu, hoje como ontem. A força da vida e da esperança, contra todos os golpes que a vida tem. Este ano não havia musgo no casal, nem na Sertã, onde o fogo destruiu tudo. Mas eu sabia onde encontrar musgo e líquenes para o teu presépio. Nem a minha veia ecologista me impediu de colher esses líquenes e musgos. Sei que estão a desaparecer, mas afinal, que conto eu? A erva praga, os chorões e os eucaliptos estão a acabar com eles! Por isso te levei um saco cheio. E aí está o teu presépio irmã, e junto com ele, a tua alegria de sempre de encher a casa de luz, e da família reunida à volta da mesa farta das iguarias que sempre fazes.

Por nós que estamos vivos. Pelos mais novos, que têm que aprender e manter o sentido da vida e de família. Pela memória dos nossos mortos, que participavam desta união, e que nós sabemos tão bem o quanto quereriam que este espírito subsista pelos tempos do tempo. Porque o teu presépio, feito das tuas figurinhas e da tua alegria, é o triunfo da vida. É Natal irmã, para nós, para os que estão longe mas que a distância não afasta, para todos os que importam. E será sempre Natal, porque o que é verdadeiro nunca morre.

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