domingo, 21 de março de 2021

As Teias da Epigenética



SACRÍLEGAS
«No ano de 1901, Elisa Sánchez e Marcela Gracia contraíram matrimónio na Igreja de São Jorge, na cidade galega da Corunha.
Elisa e Marcela amavam-se às escondidas. Para regularizar a situação, com boda, sacerdote, acta e foto, tiveram de inventar um marido. Elisa tornou-se Mario, trajou-se de homem, cortou o cabelo e falou com outra voz.
Depois, quando se soube, os jornais de toda a Espanha bradaram aos céus perante "este escândalo asquerosíssimo, esta imoralidade desavergonhada", e aproveitaram tão lamentável ocasião para vender como nunca, enquanto a Igreja, enganada na sua boa-fé, denunciava à polícia o sacrilégio cometido.
E iniciou-se a caça.
Elisa e Marcela fugiram para Portugal.
Foram presas no Porto.
Quando escaparam da cadeia, mudaram os seus nomes e fizeram-se ao mar.
Na cidade de Buenos Aires perdeu-se o rasto das fugitivas.»

Eduardo Galeano, Mulheres

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 Começando pelo início: epi é um prefixo com origem no grego clássico e que significa qualquer coisa que está sobre outra. Então epigenética é algo que está acima da genética. Relembremos que há uns anos se fez grande alarde porque finalmente se tinha sequenciado todo o genoma humano. Mas o que significou isso exactamente? Na verdade conseguimos ler o livro da vida.  No entanto esse "livro" tem inúmeras receitas, e ele não reproduz o novo ser sempre da mesma maneira. As coisas são mais subtis e mais complexas do que isso.

A epigenética é constituída por mecanismos bioquímicos complexos que alteram o funcionamento das células e até traços de hereditariedade sem mexer directamente no DNA, e mais interessante, actua como resposta aos estímulos ambientais. Em se tratando de uma vertente muito recente da biologia a teoria ainda é altamente especulativa e muito incompleta, mas pode apontar para respostas científicas para questões aparentemente sem nexo ou sem solução. Entre elas a  orientação sexual, e sobretudo a homossexualidade, que de um ponto estrictamente evolutivo darwinista aparenta ser um beco sem saída evolutivo.

 E no entanto ela existe, sempre existiu, e apesar de todos os espartilhos culturais está cá e continuará a estar. Mas olhemos para exemplos mais simples de actuação da epigenética: pensemos por exemplo num formigueiro. Ele é constituído por uma rainha que foi fecundada uma única vez, no voo nupcial. Depois de fecundada o macho morre, a jovem rainha arranca as próprias asas, cava um buraco, e durante toda a sua existência irá utilizar o sémen daquele macho para criar descendência. No entanto basta observar um desses formigueiros para perceber o seguinte: todas, absolutamente todas as formigas são filhas daquela rainha e daquele macho. Em certo sentido um formigueiro pode ser visto como um super-organismo. No entanto há algo curioso: não obstante aqueles gâmetas serem rigorosamente iguais, aquela rainha pode produzir formigas especializadas.

 Por exemplo, obreiras, soldados, machos, ou novas princesas. Mais, podemos observar que a rainha irá fazer essas diferenciação da prole em função do stress ambiental, dos estímulos e necessidades impostas pelo ambiente! Como é que isso acontece? Bom, os mais recentes estudos dizem que é pela epigenética. Os genes possuem a biblioteca necessária para criar um ser com muitas variações, a epigenética "dialoga" com o ambiente para melhor expressar a reprodução em função do stress ambiental, e os genes que serão ou não activados na criação de um novo ser são-no em função desse diálogo entre ambiente, epigenética e genes propriamente ditos. Aqui chegados, e sem perder de vista que é algo novo e ainda altamente especulativo (mas especulação científica, que aqui a cultura e as cenças ficam à porta), podemos finalmente voltar à questão da orientação sexual.

É absolutamente consensual que a orientação sexual nunca é escolha. Tal como a cor dos olhos, a forma do rosto ou qualquer outra característica humana. A especulação é a seguinte: sendo a orientação sexual sempre algo que emana da natureza, e jamais escolha ou imposição cultural, porque acontece haver homossexualidade? Os estudos empíricos demonstram que a bissexualidade é prevalecente nos humanos e nos animais superiores, e que comportamentos homossexuais são observados desde os grandes símios, passando por cetáceos (golfinhos) a aves, carneiros, etc. Então a hipótese é a seguinte, e observando comportamentos que todos já vimos: uma lésbica ou um gay são normalmente pessoas tranquilas, pacíficas e mais curioso, não procriam, mas têm quase sempre um papel importante no grupo de pertença, familiar habitualmente: ajudam a criar a prole que outros produzem e com quem partilham genes! Longe de serem becos sem saída inúteis aberrações, pode acontecer que a orientação sexual, necessariamente sempre algo natural e nunca escolha racional, seja afinal uma resposta da natureza, que usa a epigenética para levar não o indivíduo, mas o grupo, sempre mais importante que a unidade, para o melhor caminho para a conservação de uma espécie. Sendo ainda altamente especulativo, pelo menos aponta um caminho. Mas pode finalmente abrir a janela para as questões da orientação sexual, que para a espécie humana, prevalecente cultural sobre o "natural", pode afinal encerrar a velha resposta para esta questão das várias orientações sexuais. Um estudo recente feito na Holanda demonstrou que os filhos e os netos de gente que passou fome durante a segunda guerra mundial têm maior propensão para a obesidade, apontando para uma "memória" passada entre gerações. 

Entre a natureza e a cultura, a ciência lá vai trilhando o seu caminho.

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