quinta-feira, 25 de março de 2021

Saudade

 


Um disparate que os portugueses adoram repetir desde que o Teixeira de Pascoaes o inventou: que a saudade é um exclusivo dos portugueses e que a palavra "saudade" não tem tradução.

"Pascoaes e a “invenção” da Saudade"
 

  • "Teixeira de Pascoaes, poeta, escritor, ensaísta, é também o chefe de fila de um movimento literário conhecido por “saudosismo” que se desenvolveu a partir de 1912, como um movimento artístico e literário de reacção contra o cosmopolitismo. Centrado na revista A Águia e caracterizado inicialmente por uma grande abrangência, o movimento liderado por Pascoaes insere-se no quadro mais geral das tendências nacionalistas que se desenvolviam na vida portuguesa desde os anos 90 do século XIX e que se acentuaram com a implantação da Rapública, encarada como uma ocasião única para a regeneração do país. Os principais objectivos do movimento eram devolver à cultura nacional e à vida portuguesa em geral a sua grandeza perdida, substituindo as influências estrangeiras – tidas como responsáveis pelo declínio do país desde os descobrimentos – pelo culto das coisas portuguesas, que reflectissem a alma nacional.
  • É neste quadro genérico que Pascoaes irá propor a saudade como tema estruturador central do carácter nacional português. Não era esta a primeira vez que o tópico era tratado dessa maneira. Como de resto Pascoaes é o primeiro a lembrar, D. Duarte, Duarte Nunes de Leão, Luís de Camões, Rodrigues Lobo ou Almeida Garrett já tinham encarado a saudade como um motivo especificamente português. No final do século XIX, António nobre (1867-1900) tinha de novo colocado o tema da saudade na agenda poética e cultural portuguesa, estabelecendo um nexo entre a nostalgia da grandeza perdida e da pátria e nostalgia da felicidade da sua infância. Mas, independentemente deste desenvolvimentos anteriores, com Pascoaes era a primeira vez que alguém considerava a saudade não apenas como um tema especificamente português, mas como o tema português por excelência, no quadro de um empreendimento de cariz declarada e resolutamente nacionalista com prepercussões importantes na vida cultural portuguesa.
  • Propondo a saudade com núcleo estruturador da alma portuguesa, Pascoaes irá reestruturar profundamente o modo como a temática da psicologia étnica portuguesa era até então vista. Assim, e em contraste com a dispersão até então prevalecente, parece gerar-se um consenso sobre a melhor maneira de caracterizar a psicologia étnica portuguesa. esta – na continuidade das propostas de teófilo Braga – deveria ser pensada, por um lado, ao nível dos sentimentos. E, por outro lado, deveria ser também vista – contra Adolfo Coelho e Rocha Peixoto – como um factor de hierarquização positiva do povo português.
  • De facto, e em primeiro lugar, Pascoaes encarava a saudade como algo que definiria a especificidade da psicologia étnica portuguesa ao nível dos sentimentos e das emoções. No seguimento de Duarte Nunes de Leão e de Almeida Garrett, Pascoaes definiu a saudade como “o desejo do ser ou da coisa amada, em conjunto com a dor pela sua ausência. Desejo e dor confundem-se num só sentimento” que combina um elemento carnal ou material – o desejo – com um elemento espiritual – a dor – , uma orientação em direcção ao futuro – o desejo como esperança. a saudade seria nessa medida, de acordo com Pascoaes, um sentimento contraditório que ligaria universos tidos usualmente como separados, como o material e o espiritual, o passado e o presente.
  • Definida desta forma, a saudade deveria ser considerada, em segundo lugar, não aopenas como a essência mesma da alma portuguesa, mas como um factor de hierarquização positiva da cultura nacional. De facto, a saudade seria o grande sentimento que se encontra por trás da grandeza de Portugal e dos principais acontecimentos que sucessivamente lhe deram expressão, como a fundação de Portugal por D.Afinso Henriques, a vitória de 1385 em Aljubarrota, os descobrimentos, o sebastianismo, a Restauração de 1640 ou a revolução republicana de 1910. Nessa exacta medida, restituir à saudade o seu lugar central na vida portuguesa seria equivalente a recuperar para Portugal a sua grandeza perdida.
  • Produzida a partir do ensaísmo literário, a saudade de Pascoaes não releva entretanto exclusivamente de uma reflexão de matriz literária. A grande inovação que Pascoaes instroduziu no tratamento da saudade passa efectivamente pelo modo como ele elabora uma espécie de “etnografia espontânea” do tema, isto é, como produz em seu torno um conjunto de reflexões de forte orientação etnocultural em que conceitos e ideias sobre o povo, sobre raízes étnicas e sobre cultura ocupam um lugar relevante. Assim, a saudade poderia ser vista, antes do mais, como uma criação colectiva do povo português, enquanto entidade etnogenealogicamente concebida. a sua existência remontaria de facto ao tempo dos lusitano, vistos como o produto da combinação de um elemento ária – ou ariano – com um elemento semita. esta origem dual da cultura lusitana e, depois, portuguesa, expressar-se-ia de resto na própria concepção contraditória da saudade como dor e desejo. enquanto que a dor se ficaria a dever à influência semita, o desejo reflectiria o peso das raízes árias na formação étnica de Portugal.
  • Simultaneamente, na argumentação do carácter português da saudade, Pascoaes recorreu abundantemente a factos extraídos do universo da cultura popular portuguesa. À semelhança de Teófilo Braga, concedeu grande importância à poesia popular portuguesa e, em particular, ao cancioneiro popular, encarando-o como “a obra mais representativa da raça” e como aquela onde melhor “transparece a fusão dos contrastes”. Rituais religiosos como a Encomendação das Almas, assim como outras expressões da religiosidade popular foram também utilizadas por Pascoaes como instâncias fundamentais de demonstração do carácter português da saudade.
  • Como se sabe, a publicação das teses de Pascoaes suscitou uma polémica muito viva. Um dos adversários mais virulentos de Pascoaes foi António Sérgio (1883-1969). Defendendo enfaticamente um ponto de vista racionalista e anti-nacionalista acerca do tópico, Sérgio optou por centrar os seus ataques a Pascoaes em torno do carácter supostamente intraduzível da palavra saudade. De facto, segundo Pascoaes, o povo português seria:
  • “o único povo que pode dizer que na sua língua existe uma palavra intraduzível nos outros idiomas, a qual encerra todo o sentido da sua alma colectiva (…) Sim: a palavra saudade é intraduzível. O único povo que sente a Saudade é o povo português (…). Os outros povos europeus sentem naturalmente uma espécie de saudade que em francês é souvenir, em espanhol recuerdo, etc. Mas este sofrimento, nesses Povos, não toma alma e o corpo que adquire no sentir português. Souvenir ou recuerdo são apenas um elementos da Saudade, cujo perfil é inconfundível. e por isso, ela se exteriorizou numa palavra que não tem equivalente noutras línguas”
  • Para antónio Sérgio, pelo contrário, a palavra saudade não era de maneira nenhuma intraduzível:
  • “muito ao contrário do que Pascoaes afirma, a palavra saudade é traduzível. Várias nações a representam por um termo especial: o galego tem soledades, soedades, saudades; o catalão anyoransa, anyoramento, o italiano desio, disio; o romeno, doru, ou dor; o sueco saknad; o dinamarquês, savn; e o islandês, saknaor…”
  • Carolina Michaelis de Vasconcelos também não subscrevia as teses de Pascoaes sobre o carácter intraduzível da saudade, tentando igualmente – à semelhança de Sérgio – mostrar que um certo número de línguas europeias possuíam também equivalentes da saudade:
  • “é inexacta a ideia que outras nações desconheçam esse sentimento. É ilusória a afirmação (já quatro vezes secular) que o mesmo vocábulo Saudade (…) não tenha equivalente em língua alguma do globo terráqueo e distinga unicamente a faixa atlântica, faltando mesmo na Galiza de além-Minho”
  • Segundo Carolina Michaelis, saudade tinha de facto equivalente em quatro outras línguas da península ibérica: soledad ou soledades em castelhano, senhoredade no asturiano, morrinha no galego e anoryanza e anoryament no catalão. De resto, seria possível encontrar termos similares noutras línguas europeias: sehnsucht em alemão, längta em sueco. A particularidade da saudade residiria no seu uso mais frequente em português, por exemplo, durante os descobrimentos ou na literatura, e na importância da sua contribuição para a configuração da “alma portuguesa”.
  • Apesar desta controvérsia, as ideias de Pascoaes receberam em geral um acolhimento bastante favorável. Como escreveu Óscar Lopes, “as principais ideias de Pascoaes estão em sintonia com a cultura portuguesa do seu tempo” e, entre as elites culturais portuguesas, a saudade torna-se num instrumento relativamente usado para falar nas especificidades do ser português. (…)"

  • Leal, J. (2000). Etnografias Portuguesas (1870-1970) – Cultura Popular e Identidade Nacional. Ed: Publicações D.Quixote, Lisboa

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