quarta-feira, 6 de março de 2013

Linguagem simbólica - Religião, e psique - Uma visão antropológica



Ok, vamos falar do simbólico então? Boa. Para isso vamos recuar um pouco no tempo, até há 100 anos atrás. Nessa altura um senhor chamado Freud escreveu um livro chamado "Mal-estar na Civilização" (existe traduzido para português brasileiro). A certa altura Freud descreve de forma clara a realidade humana: vivemos num mundo aflitivo, sofrido, assustador: ele identificou claramente as três formas de sofrimento: a dor física, a noção de que somos mortais, e a consciência de que as relações com outras pessoas implicam necessariamente sofrimento. Contra esta consciência de uma realidade aflitiva, o Ser humano ergue uma outra realidade: fantasia sobre um mundo que nega esse sofrimento. Mais, passa a acreditar de forma individual e colectiva nessa fantasia, e a isso os cientistas sociais chamam delírio. Viver num mundo imaginário, como se ele seja real, define-se desta forma. O que nós temos observado é que o Ser humano é profundamente delirante. Alguns exemplos de delírios são o "meu Coríntias", ou o meu Benfica, o "meu partido político", ou, mais sensível, a minha religião. O delírio tem características interessantes: nunca se reconhece como tal. Por isso é que os deuses do hinduísmo são um delírio para um Cristão, mas acreditar que um homem que morreu pregado numa cruz e ressuscitou ao fim de 3 dias é a mais pura as verdades. Aliás, a ciência nunca relatou tal fenómeno. Ele só existe na imaginação de alguns, na fé, na vontade de acreditar, e não porque o tenham verificado ou aferido, mas simplesmente porque querem acreditar nisso. Nesta matéria, tudo o que o crente não quer é a possibilidade da aferição de tal afirmação. As pessoas religiosas têm um compromisso com as verdades absolutas, com os porquês, com a sua fé. A ciência não tem nenhum compromisso com essas verdades: elas são metafísicas, logo não podem ser medidas nem quantificadas. O que a ciência busca é os "comos"; como acontece determinado fenómeno, qual a relação de causa-efeito, enfim, a ciência tem um compromisso com as realidades tangíveis, com as verdades mais ou menos frágeis do mundo que pode ser medido e quantificado. Ora, as pessoas detestam essa incapacidade da ciência de dar respostas ao absoluto. Os modelos da ciência explicam muito bem os mecanismos de funcionamento do mundo, mas os seus modelos são sempre provisórios. Coisa chata, vamos lá a correr para o conforto das verdades absolutas dadas pela fé ou pela religião. Agora o simbólico: é mais ou menos consensual que a maioria dos nossos processos mentais ocorre de forma subconsciente ou inconsciente. Muito pouco do que pensamos passa pelo crivo da consciência e da razão. É o famoso iceberg da psicologia, onde 90% está debaixo de água, e apenas 10% é processado de forma consciente pela mente. Tudo o que se passa no subconsciente e tem que ser comunicado entre pessoas é codificado de forma simbólica. Imagine que alguém quer dizer perante a comunidade que quer fazer sexo com uma parceira. Imagine ainda que se trata de um par de cristãos: eles vão a uma igreja e casam-se. Perante qualquer um deles a união está a ser feita perante deus. Ora, nós não podemos levar uma balança para aferir quanto é que o tal deus presente pesa, nem uma fita métrica para lhe medi a barriga. A melhor aproximação que podemos ter da imagem desse deus é uma pintura de um velho barbudo e de ar severo pintado no tecto da Capela Sistina. Desta forma, enquanto cientista, deus é uma realidade completamente vedada. Mas já quanto ao que se passa do outro lado do altar, o cientista já pode dizer alguma coisa: o que se pode medir e quantificar é a presença dos noivos, o padre e os convidados. O que em termos sociais e simbólicos se está ali a passar é outra coisa: é a legitimação de uma união espiritual e física de duas pessoas. A introdução de uma aliança num dedo é uma cópula simbólica perante as testemunhas: o dedo é o pénis erecto, a aliança é a vagina. Aquelas duas pessoas estão a dizer simbolicamente que irão para a cama juntos fazer sexo e filhos (algo que o grupo social em que se inserem terá necessariamente de controlar, os controlos sociais mais importantes para a nossa sobrevivência são a produção de bens e a reprodução), e as testemunhas estão a afirmar simbolicamente que tomam conhecimento de tal facto e aceitam e legitimam isso. A maior parte da comunicação entre pessoas não é feita por linguagem corrente, mas sim por linguagem simbólica. Imagine a figura de Nossa Senhora, ou como nós dizemos com todas as letras, a nossa mãe do Céu, a nossa mãe divina. Se reparar-mos é a nossa mãe, a quem nós negamos ser um ser sexuado. É muito difícil imaginar a nossa mãe a fazer sexo, não é ? Então, como falar de sexo quando tal não é permitido? De forma simbólica! Escondemos os caractéres sexuais, como por exemplo os seios. Para dizer que mulher e mãe, colocamos o sexo feminino sob a forma simbólica de uma rosa! Se alguém quiser falar do sexo feminino num contexto mais sério (ou sagrado), não poderá dizer "eu gosto muito de vagina)! Mas como diz o Gibet Becaup, "L'important c'est la rose". Aí já se torna legítimo falar do sexo da mulher nesse contexto. Como podemos ver, muito haveria a dizer sobre a linguagem simbólica. Mas os cientistas têm o terrível defeito de questionar tudo, ser observadores, lembrar o que não lembraria ao diabo! Para quem domina a língua inglesa, e se me permitem, recomendo vivamente um livro de antropologia chamado "A Floresta dos símbolos" de um antropólogo britânico chamado Victor Turner" Lamentavelmente nunca encontrei a tradução para português, nem mesmo português do Brasil (nisso o Brasil vai muito à frente de Portugal, costuma traduzir muito mais do que nós). O confronto entre crentes e não crentes é um conflito interessante, mas estamos talvez a comparar coisas incomparáveis: o agnóstico procura abordar o mundo de uma forma muito diferente da do crente. A generalidade da Humanidade construiu um EGO enorme, em oposição a toda a evidência vivida: Segundo a bíblia somos feitos à imagem e semelhança de deus, ou seja queremos ser deus. Tendo em atenção todo o historial de violência sobre a qual a humanidade se erigiu, que belo deus nós arranjamos! O nosso Ego continua enorme, não só fomos feitos à imagem de deus, como ele nos pôs no centro da criação, do universo! Mais tarde, no século XVIII o iluminismo disse-nos que nos erguíamos acima dos restantes animais, e que éramos racionais. O que constatamos agora é a existência de pelo menos 3 feridas egoicas na Humanidade: Darwin demonstrou que não somos feitos à imagem e semelhança de um deus, mas antes somos descendentes de símios ancestrais. Copérnico retirou-nos do centro do universo: afinal não somos centro de coisa nenhuma. Por fim Freud desconstrói a imagem de um ser racional. O Ser Humano continua a ser um Ser profundamente irracional. Sabemos disto, mas não gostamos e por isso recusamos, fugindo para a fé. Deixar de parte os nossos medos e procurar ver um pouco mais longe pode parecer um exercício assustador, mas no fim pode também ser muito gratificante. Isso não significa que as questões da metafísica não estejam presentes: estamos sempre condenados a ela. Mas podemos pelo menos tentar sair dessa zona de conforto e afrontar o medo do mundo. No final podemos ter uma perspectiva bem mais realista do mundo e do universo. Contra o medo, que condenou mulheres à fogueira, perseguição e ódio os Judeus, e a um role infindável de crimes a que o medo normalmente leva. Viva-mos e deixemos viver: em 100.000.000 de estrelas da via-láctea, cada ser é único e precioso. E os nossos desejos e crenças não pode nem devem impor-se aos demais. Aceitar as diferentes formas de pensar e de viver pode permitir um mundo mais justo e mais fraterno. Eu acredito e deixo de acreditar naquilo que quero. Tenho a minha espiritualidade, mas recuso partilhá-la com outros, porque a essa partilha se convenciona chamar religião, com muitas ovelhas seguindo o pastor e sendo controladas por ele. A isso eu chamo controlo social, e a isso eu digo NÃO, pagando por isso o preço da solidão. Mas antes lúcido e só, do que acompanhado no delírio do grupo. Abraço fraterno.