domingo, 21 de março de 2021

Escarficação e Arte Corporal



Os registos mais antigos desta prática foram encontrados em Ain Ghazal, na Jordânia, e pertencem ao paleolítico, 8000 AC.
Podemos pois dizer que a arte corpiral acompanha a humanidade desde sempre
A arte corporal pode ir de simples e discretas pinturas, como a vulgar maquilhagem quotidiana, até modificações permanentes e extensas, onde se incluem piercings, tatuagens ou mesmo escarficações, ou seja, cicatrizes propositadamente criadas.
Porque sentimos a compulsão para transformar a nossa pele e corpo em tela onde se projectam mensagens, por norma simbólicas, embora às vezes escapem à norma?
Uma tatuagem tanto pode conter símbolos e desenhos abstractos (mas plenos de significado), como um claro e objectivo explícito, por exemplo "amor de mãe", ou "Guiné, 1968", numa alusão objectiva e não simbólica/não codificada da ligação mãe/filho ou na participação de um evento traumático como a guerra.
Na arte corporal mais simples podemos fixar a atenção na maquilhagem, por exemplo na cultura ocidental. O vermelho, cor simbólica do sangue, dos lábios pintados, das mulheres férteis, do sangue menstrual, da vagina, do sangue do guerreiro invencível, dos cravos vermelhos, dos anturios, da cabeça coroada de espinhos do Cristo.
Ou o branco, do leite materno, puro, ou do sémen que multiplica a vida.
Ou mesmo os olhos realçados por traços negros ou sombras coloridas. Há sempre um objectivo, mesmo que ele seja "meramente simbólico", porque o simbólico é manhoso, sub-repticio e gosta de se disfarçar de "meramente".
Dizer-se "meramente simbólico" é não perceber o que é o simbólico enquanto linguagem universal codificada que exprime os processos mentais inconscientes ou subconscientes, e que são a maioria dos nossos processos mentais, a imensa base do iceberg abaixo da linha de água.
Há pois um objectivo concreto, consciente mas também subconsciente na arte corporal.
Somos seres sociais, dependemos uns dos outros, e como tal temos necessidades imperiosas de comunicar.
De forma ingénua podemos acreditar que as nossas formas de comunicar se resumem à fala, ou ao seu sucedâneo, a escrita.
Nada mais errado: a maior parte da nossa comunicação é feita por símbolos, não por signos, e o corpo, sendo em maior ou menor grau a única coisa que possuímos (não esquecer que nem sempre: as mulheres são o único ser com uma parte do corpo legislada, o ventre, do qual não são donas), e é esse corpo que temos como melhor e mais acessível fonte onde podemos projectar os nossos processos mentais, anseios, traumas, signos e símbolos de pertença ao grupo, num equilíbrio necessariamente precário e dinâmico entre a afirmação do ego e o confronto com o super-ego, entre a necessidade de afirmar o "eu" e o choque com a bagagem cultural imposta pelo grupo a que temos necessidade imperiosa de pertença.
De notar que nem sempre A arte corporal, sobretudo a permanente, como as tatuagens, é feita por vontade própria. Muitas vezes ela é imposta pelo grupo aos mais frágeis, numa afirmação de poder e de domínio.
Por exemplo, nas prisões americanas para mulheres, a norma é elas possuírem tatuagens de pertença ao seu "gang", e não lhes foi dada hipótese de escolha. Por serem demasiado jovens e se identificarem com o grupo, "tribo", "gang", ou porque os homens do grupo fazem o que todos os homens fazem, controlo das mulheres (sobretudo irmãs), e troca dessas mulheres entre si, criando laços de parentesco e promovendo a necessária exogamia, advinda do imperativo biológico de troca de gâmetas.
Outro exemplo de arte corporal vem do Japão, onde as tatuagens são ainda hoje social e culturalmente mal vistas, porque estão conectadas com as tríades, as máfias japonesas que até há poucos séculos dominavam o país, que só foi unificado depois da chegada dos portugueses e da introdução das armas de fogo.
Neste país a resistência às tatuagens é tal que está inclusivamente legislada.
Podemos pois dizer que a arte corporal é universal, pertence a todas as eras e a todas as culturas, mesmo as que nunca se cruzaram, é identitária, definindo laços de pertença a um grupo social, mas esconde em si mesma a afirmação do Ego. Isto é visível na afirmação corrente de que "eu possuo uma tatuagem", (pertenço à tribo), mas a minha tatuagem é única (afirmação do "eu").
Outro facto curioso é que em muitas sociedades a arte corporal está regulamentada de forma rígida, e que a sua produção está legislada e legitimada com objectivos de definição de rituais de passagem, de momentos a que Vítor Turner chamou de "liminaridade", momentos de passagem, por exemplo da infância para a adolescência, ou desta para a idade adulta.
Estão devidamente registados e estudados esses rituais de passagem, por exemplo em inúmeras sociedades americanas ou africanas.
É nelas que encontramos os exemplos dados nestas fotografias: as escarficações são um exemplo da arte corporal com objectivos de controlo e ascensão social.
São práticas de extrema violência.
A pele e a carne são cortadas com vidros, lanças ou lâminas (quase sempre partilhadas, partilha ritual do sangue e da dor, já agora de doenças infecto-contagiosas), e essas feridas que sangram abundantemente são contaminadas propositadamente para infectarem, sendo essa infecção que cria as cicatrizes permanentes que definem permanentemente essa arte corporal, que mulheres e guerreiros irão exibir orgulhosamente por toda a vida, símbolo da sua sobrevivência a esses rituais de passagem, à aceitação plena pelo grupo de um igual entre iguais, de um adulto de pleno direito, de uma mulher forte, capaz de assegurar a reprodução social.
Isto justifica muito bem o funcionalismo das sociedades, mas encerra outra questão: não explica a mudança. Se fosse apenas por controlo social e necessidade de pertença identitária as sociedades permaneceriam imutáveis, o que não é o caso!
A mudança existe porque existe o Ego, o "Eu", que negoceia com o grupo e com o super-ego, num processo lento de afirmação.
Não são raras as vezes em que, com o passar do tempo, essa arte corporal marcada a sangue, ferro e fogo, permanente, é repudiada pelo ego. Mas o grupo sabe que ela é permanente.
Nas tais prisões americanas o que as detidas mais pedem é maquilhagem que permita esconder as suas velhas tatuagens das quais não se podem livrar!
E nas tribos do ocidente? Ah, aí não há tribos. Ai somos todos civilizados!
Somos? Tirando a tribo do futebol, ou do partido político, ou da banda musical, ou dos góticos, ou dos gays, ou dos betos, ou da minha "igreja", ou...
Somos tão identitários e tribais como qualquer outro grupo sócio-histórico.
Daí a nossa necessidade de termos a nossa arte corporal, porque a urgência de comunicar nos impele, porque vivemos na tensão e no equilíbrio dinâmico e precário da guerra entre ego e super-ego.
Daí que seja hoje difícil encontrar alguém que não possua a sua tatuagem.
Depois há espaço para quem simplesmente não quer: porque não necessita de afirmar-se pertença a nenhum grupo, porque não tem necessidade de se afirmar adulto ou inteiro exibindo isso no corpo, porque esse corpo não é propriedade de ninguém a não ser do próprio, porque há gente apaixonada pela discrição e sobriedade, porque há lobos solitários que não se importam de pagar com solidão o preço de não terem nem dependerem da tribo.
De um ponto de vista estritamente racional, que é o que menos importa, as tatuagens e os piercings implicam riscos e custos.
O nosso corpo sabem o que não lhe pertence e tende a rejeitar to o que lhe é estranho.
Toleramos titânio, platina, zirconias... mas quase tudo é rejeitado.
Colocar tintas sob a pele implicam o risco de serem absorvidas e irem parar onde não é suposto, por exemplo, ao sistema linfático.
Metais podem oxidar e causar problemas sérios.
Piercings na língua são martelos a partir o esmalte dos dentes.
Tinta em regiões extensas de pele podem interferir com imagiologia nuclear, é frequente pessoas com cancro não puderem fazer esses exames por interferirem com as imagens obtidas, ou aquecerem e causarem queimaduras quando submetidas a esses exames.
Já as escarficações cortam terminais nervosos que nunca se refazem, retirando sensibilidade permanentemente.
Para alguns são preços demasiado altos a pagar pela mensagem.
Arte corporal dá uma imagem de estabilidade num mundo líquido onde existimos sem barbatanas para nadar.
Por norma os desenhos são belíssimos. Um dia vi um sugerido pelo Facebook (sabe tanto de mim), que era a minha cara : o perfil de um lobo a uivar, recortado de uma árvore com ramos despidos. Obrigado Facebook pela sugestão, mas não.
Nada contra, é bonito, entendo, aceito, mas não é o meu mundo.
A música é bela, mas o silêncio é precioso.
A arte também, mas não há nada mais belo de que uma pele despida onde possa projectar todas as peças de arte que o momento inspire.
Viva a diversidade, viva a liberdade.
Todos diferentes, todos iguais, nesta caminhada que só pode ser feita em conjunto, na gravidade do amor, que aproxima e afasta num bailado perpétuo.

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