Lembraste-me
agora de um tempo antigo, embora para mim pareça que foi ontem: há na
Lourinhã uma quinta milenar, a quinta da Moita longa, a uns 2
quilómetros da casa dos meus pais. A quinta deve ter tido origem durante
a ocupação romana, como atesta o bosque de loureiros e a muralha
romana. Um tal cônsul romano de nome Laurus terá dado o nome à Lourinhã.
No limite da quinta, e num vale cavado corre
um ribeiro que esconde umas ruínas interessantes: um tanque enorme de
pedra encimado por uma fontainha, um poço cheio de lodo, muitos choupos,
e juncos, muitos juncos. Era aí que o meu pai e o meu tio Armando iam
todos os anos apanhar os ditos juncos por alturas de Agosto. Mais tarde
esse junco seria usado na empa das vinhas. é desse tempo que agora
recordo, os homens a arrancar junco dos charcos, as mulheres sentadas à
sombra fresca do choupal a escolher as melhores plantas, e as crianças -
onde me incluía - a brincar no ribeiro e nos charcos, a apanhar
peixinhos e cobrinhas de água, ou enguias que os adultos fritavam para o
almoço. Posso fechar os olhos e retomar a esse tempo feliz. Sinto o
cheiro da terra quente e húmida, fértil como só a terra rica em água e
húmus consegue ser. Vale pequeno e esquecido, hoje totalmente perdido
entre silvados. Restos de um tempo menos antigo, (só tem mil anos), em
que os monges e engenheiros da ordem de cister secaram aquelas terras
pantanosas, onde hoje restam os vestígios de pedra desse esforço que fez
recuar o mar mais de uma dezena de quilómetros, até à Areia Branca.
Para mim ficou o tempo feliz da infância breve. Ainda hoje, quando passo
por um jardim que esteja a ser regado, ou onde a relva esteja a ser
aparada, retorno de imediato ao tempo da terra quente a cheirar a seiva
fresca, aos risos felizes de crianças e adultos, à vida que então corria
doce e despreocupada.
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
quarta-feira, 6 de março de 2013
Linguagem simbólica - Religião, e psique - Uma visão antropológica
Ok, vamos falar do simbólico
então? Boa. Para isso vamos recuar um pouco no tempo, até há 100 anos atrás.
Nessa altura um senhor chamado Freud escreveu um livro chamado "Mal-estar
na Civilização" (existe traduzido para português brasileiro). A certa
altura Freud descreve de forma clara a realidade humana: vivemos num mundo
aflitivo, sofrido, assustador: ele identificou claramente as três formas de
sofrimento: a dor física, a noção de que somos mortais, e a consciência de que
as relações com outras pessoas implicam necessariamente sofrimento. Contra esta
consciência de uma realidade aflitiva, o Ser humano ergue uma outra realidade:
fantasia sobre um mundo que nega esse sofrimento. Mais, passa a acreditar de
forma individual e colectiva nessa fantasia, e a isso os cientistas sociais
chamam delírio. Viver num mundo imaginário, como se ele seja real, define-se
desta forma. O que nós temos observado é que o Ser humano é profundamente
delirante. Alguns exemplos de delírios são o "meu Coríntias", ou o
meu Benfica, o "meu partido político", ou, mais sensível, a minha
religião. O delírio tem características interessantes: nunca se reconhece como
tal. Por isso é que os deuses do hinduísmo são um delírio para um Cristão, mas
acreditar que um homem que morreu pregado numa cruz e ressuscitou ao fim de 3
dias é a mais pura as verdades. Aliás, a ciência nunca relatou tal fenómeno.
Ele só existe na imaginação de alguns, na fé, na vontade de acreditar, e não
porque o tenham verificado ou aferido, mas simplesmente porque querem acreditar
nisso. Nesta matéria, tudo o que o crente não quer é a possibilidade da
aferição de tal afirmação. As pessoas religiosas têm um compromisso com as
verdades absolutas, com os porquês, com a sua fé. A ciência não tem nenhum
compromisso com essas verdades: elas são metafísicas, logo não podem ser
medidas nem quantificadas. O que a ciência busca é os "comos"; como
acontece determinado fenómeno, qual a relação de causa-efeito, enfim, a ciência
tem um compromisso com as realidades tangíveis, com as verdades mais ou menos
frágeis do mundo que pode ser medido e quantificado. Ora, as pessoas detestam
essa incapacidade da ciência de dar respostas ao absoluto. Os modelos da
ciência explicam muito bem os mecanismos de funcionamento do mundo, mas os seus
modelos são sempre provisórios. Coisa chata, vamos lá a correr para o conforto
das verdades absolutas dadas pela fé ou pela religião. Agora o simbólico: é
mais ou menos consensual que a maioria dos nossos processos mentais ocorre de
forma subconsciente ou inconsciente. Muito pouco do que pensamos passa pelo
crivo da consciência e da razão. É o famoso iceberg da psicologia, onde 90%
está debaixo de água, e apenas 10% é processado de forma consciente pela mente.
Tudo o que se passa no subconsciente e tem que ser comunicado entre pessoas é
codificado de forma simbólica. Imagine que alguém quer dizer perante a
comunidade que quer fazer sexo com uma parceira. Imagine ainda que se trata de
um par de cristãos: eles vão a uma igreja e casam-se. Perante qualquer um deles
a união está a ser feita perante deus. Ora, nós não podemos levar uma balança
para aferir quanto é que o tal deus presente pesa, nem uma fita métrica para
lhe medi a barriga. A melhor aproximação que podemos ter da imagem desse deus é
uma pintura de um velho barbudo e de ar severo pintado no tecto da Capela
Sistina. Desta forma, enquanto cientista, deus é uma realidade completamente
vedada. Mas já quanto ao que se passa do outro lado do altar, o cientista já
pode dizer alguma coisa: o que se pode medir e quantificar é a presença dos
noivos, o padre e os convidados. O que em termos sociais e simbólicos se está
ali a passar é outra coisa: é a legitimação de uma união espiritual e física de
duas pessoas. A introdução de uma aliança num dedo é uma cópula simbólica
perante as testemunhas: o dedo é o pénis erecto, a aliança é a vagina. Aquelas
duas pessoas estão a dizer simbolicamente que irão para a cama juntos fazer
sexo e filhos (algo que o grupo social em que se inserem terá necessariamente
de controlar, os controlos sociais mais importantes para a nossa sobrevivência
são a produção de bens e a reprodução), e as testemunhas estão a afirmar
simbolicamente que tomam conhecimento de tal facto e aceitam e legitimam isso.
A maior parte da comunicação entre pessoas não é feita por linguagem corrente,
mas sim por linguagem simbólica. Imagine a figura de Nossa Senhora, ou como nós
dizemos com todas as letras, a nossa mãe do Céu, a nossa mãe divina. Se
reparar-mos é a nossa mãe, a quem nós negamos ser um ser sexuado. É muito
difícil imaginar a nossa mãe a fazer sexo, não é ? Então, como falar de sexo
quando tal não é permitido? De forma simbólica! Escondemos os caractéres
sexuais, como por exemplo os seios. Para dizer que mulher e mãe, colocamos o
sexo feminino sob a forma simbólica de uma rosa! Se alguém quiser falar do sexo
feminino num contexto mais sério (ou sagrado), não poderá dizer "eu gosto
muito de vagina)! Mas como diz o Gibet Becaup, "L'important c'est la
rose". Aí já se torna legítimo falar do sexo da mulher nesse contexto.
Como podemos ver, muito haveria a dizer sobre a linguagem simbólica. Mas os
cientistas têm o terrível defeito de questionar tudo, ser observadores, lembrar
o que não lembraria ao diabo! Para quem domina a língua inglesa, e se me
permitem, recomendo vivamente um livro de antropologia chamado "A Floresta
dos símbolos" de um antropólogo britânico chamado Victor Turner"
Lamentavelmente nunca encontrei a tradução para português, nem mesmo português
do Brasil (nisso o Brasil vai muito à frente de Portugal, costuma traduzir
muito mais do que nós). O confronto entre crentes e não crentes é um conflito
interessante, mas estamos talvez a comparar coisas incomparáveis: o agnóstico
procura abordar o mundo de uma forma muito diferente da do crente. A
generalidade da Humanidade construiu um EGO enorme, em oposição a toda a
evidência vivida: Segundo a bíblia somos feitos à imagem e semelhança de deus,
ou seja queremos ser deus. Tendo em atenção todo o historial de violência sobre
a qual a humanidade se erigiu, que belo deus nós arranjamos! O nosso Ego
continua enorme, não só fomos feitos à imagem de deus, como ele nos pôs no
centro da criação, do universo! Mais tarde, no século XVIII o iluminismo
disse-nos que nos erguíamos acima dos restantes animais, e que éramos
racionais. O que constatamos agora é a existência de pelo menos 3 feridas
egoicas na Humanidade: Darwin demonstrou que não somos feitos à imagem e
semelhança de um deus, mas antes somos descendentes de símios ancestrais.
Copérnico retirou-nos do centro do universo: afinal não somos centro de coisa
nenhuma. Por fim Freud desconstrói a imagem de um ser racional. O Ser Humano
continua a ser um Ser profundamente irracional. Sabemos disto, mas não gostamos
e por isso recusamos, fugindo para a fé. Deixar de parte os nossos medos e
procurar ver um pouco mais longe pode parecer um exercício assustador, mas no
fim pode também ser muito gratificante. Isso não significa que as questões da
metafísica não estejam presentes: estamos sempre condenados a ela. Mas podemos
pelo menos tentar sair dessa zona de conforto e afrontar o medo do mundo. No
final podemos ter uma perspectiva bem mais realista do mundo e do universo.
Contra o medo, que condenou mulheres à fogueira, perseguição e ódio os Judeus,
e a um role infindável de crimes a que o medo normalmente leva. Viva-mos e
deixemos viver: em 100.000.000 de estrelas da via-láctea, cada ser é único e
precioso. E os nossos desejos e crenças não pode nem devem impor-se aos demais.
Aceitar as diferentes formas de pensar e de viver pode permitir um mundo mais
justo e mais fraterno. Eu acredito e deixo de acreditar naquilo que quero.
Tenho a minha espiritualidade, mas recuso partilhá-la com outros, porque a essa
partilha se convenciona chamar religião, com muitas ovelhas seguindo o pastor e
sendo controladas por ele. A isso eu chamo controlo social, e a isso eu digo
NÃO, pagando por isso o preço da solidão. Mas antes lúcido e só, do que
acompanhado no delírio do grupo. Abraço fraterno.
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