domingo, 21 de março de 2021

Fátima aqui tão perto



Voltei ao tema de Fátima depois de falar com uma amiga recente, actriz, e que participa num filme a estrear brevemente: uma super produção americana, ao estilo de Hollywood, falada em inglês, e que aborda de novo uma temática eternamente estranha e surpreendente, a das aparições marianas em Fátima.
Visitar Fátima é um exercício de introspecção. Nunca lá fui em nenhum dia 13, de Maio a Outubro. Não gosto de multidões nem de manifestações colectivas de religiosidade.
Ainda assim já várias vezes visitei Fátima e arredores, para sempre ligados ao que se passou há 103 anos.
Fátima impressiona: pela luz, pela dimensão, pela paz que sempre lá encontro, e pelas saudades imensas que sinto quando lá vou.
Nasci no Bombarral, pertenço ao distrito de Leiria, tal como Fátima. Aquelas casinhas, aquelas pessoas, aqueles rostos, aquela maneira de ser e de pensar são as minhas.
Os meus avós, os meus pais, e eu mesmo vivemos aquele mundo rural, que hoje me parece tão remoto quanto os anéis de Saturno.
Fátima é a mãe. É a nossa mãe divina, mas para mim também é literalmente a minha mãe: recordo o táxi alugado pelo pai, para ir com a família toda a Fátima pagar uma promessa.
Nasci de pés, quase morri e quase matei a minha mãe durante o parto.
Só em adulto, pouco tempo antes de morrer, o pai me contou que o médico lhe perguntou se era para salvar a mãe ou o filho. "Salve a mãe" disse o pai. E fez muito bem, corroborei eu. Havia três raparigas para criar, se o tão ansiado rapaz morresse, pelo menos as manas teriam mãe. O pai gostou do que escutou da minha boca.
A visita a Fátima - e também à Aceiceira - ficou vincada na memória. Não só o santuário, mas os Valinhos, as estátuas dos pastorinhos e do anjo.
Voltei anos depois a Fátima com a família, desta vez pela minha mãe, por causa do cancro que a corroía e que em breve a levaria.
Nessa altura já eu percebera que não adianta implorar ao divino, e que nunca iria negociar com ele. Nem promessas, nem dinheiro, nada. Lembro da tristeza e da dor, tal como voltaria a sentir quando a minha saudosa irmã Marília ficou também cancerosa. Dessa vez fui lá sozinho. Tenho que me habituar à solidão.
De novo fui pela memória, contemplação e silencio. Não vale a pena implorar a Deus ou à virgem. Aliás, se dos 3 pastorinhos, a virgem logo informou que 2 deles iriam para o céu, de que adianta? É por conseguinte do domínio do divino decidir quem fica e quem parte, e por isso inútil implorar. Deus é um abismo.
Por alguns anos não voltei ao assunto.
Às vezes gosto de reflectir sobre um fenómeno que mexeu e mudou o mundo católico e não só.
De um ponto de vista sociológico e antropológico Fátima é um fenómeno fascinante.
Portugal é um país profundamente feminino: é o país das mouras encantadas, da virgem Maria, do sagrado feminino, do colo doce da nossa mãe.
O ethos de Portugal passa pelo culto do divino feminino. Antes de Fátima o culto Mariano tinha o seu expoente máximo no santuário do cabo Espichel.
Lugar telúrico, onde as pegadas no rochedo lá estão, não da mulinha com a nossa senhora e o menino no dorso, mas de dinossauros que há milhões de anos por ali caminharam.
Fátima destronou o cabo Espichel, e num longo processo de 100 anos deixou de ser repudiada para se tornar num local de peregrinação de pobres e de deserdados, mas também de papas e poderosos.
A Igreja não conseguiu vencer Fátima, foi obrigada a assimilá-la, a domesticá-la, a torná-la altar do mundo católico.
Fátima marcou de forma indelével o século XX português. Não é possível falar da nossa história recente ignorando o fenómeno despoletado por três crianças pobres e analfabetas. A minha gente.
O filme americano veio trazer-me de novo Fátima ao espírito, e pela primeira vez tive curiosidade em ler as memórias da irmã Lúcia, a única vidente sobrevivente. Os irmãos Francisco e Jacinta morreram logo depois, mas a Lúcia viveu por longos 98 anos.
Fátima só pode ser lida e pensada à luz do contexto histórico. Portugal tinha saído há uma década de um regime monárquico para um regime republicano, esperança de vencer o atraso de séculos, desde que o império tremeu com a integração na Espanha e o esforço de libertação das invasões francesas, da fuga da corte, do período em que fomos um protectorado britânico, humilhados por um mapa cor-de-rosa imposto pela potência inglesa, supostamente o nosso melhor e velho aliado.
Fátima acontece por conseguinte num momento de profunda crise: em plena primeira república, frágil e instável, em plena primeira guerra Mundial, em que Portugal participou, e onde perdeu muitos homens, sofrendo o país à míngua de pão.Em 1918 chegou a temível pneumónica, que matou num ano milhares de portugueses, incluindo o Francisco e a Jacinta.
É neste contexto de instabilidade, carência e guerra, atraso e muito analfabetismo, com a coesão social garantida em grande medida pela igreja, ela mesma em conflito com o ideal progressista da república, que os três pastorinhos começam a contar uma estória surpreendente, de aparições de anjos e da virgem Maria, eles mesmos.
O mundo daquelas crianças era por conseguinte pautado pelas tarefas do campo, das sementeiras e do pastoreio, de sermões dominicais e de controlo social apertado.
Fosse qual fosse a vivência daquelas crianças, ela nunca poderia fugir do mundo que era o seu, feito de Santos e de anjos, de demónios e da virgem Maria.
De 1915, a Outubro de 1917 aquelas três crianças haveriam de receber visitas celestiais: a primeira, as do anjo, auto-denominado anjo da paz, ou também anjo de Portugal. De 13 de Maio a 13 de Outubro de 1917, a própria virgem Maria, "uma senhora linda, tão brilhante como o sol".
Foram estas as entidades divinas que haveriam de transmitir uma mensagem de paz, mas também de sacrifício, de dor, e alguns segredos que vararam o século XX, influenciando Portugal, mas também Roma, toda a cristandade e mais além.
Lúcia sobreviveu à terrível pneumónica, que levou os primos Francisco e Jacinta logo em 1919. Ficou para manter e dar dimensão universalista a Fátima.
Jovem alegre e bem disposta, acabaria forçada à clausura e celibato impostos pela Igreja. Desde os acontecimentos de 1917 não voltou a ser uma simples rapariga anónima. Era constantemente assediada, importunada e violentada pelas pessoas que queriam fazer dela intermediária com o divino. Até o cabelo lhe arrancavam.
Cedo a Igreja e a república perceberam que o fenómeno era imenso, mais forte do que elas, e por isso a igreja decidiu controlá-lo, tratando de impor a clausura à vidente.
A república, que repudiava o fenómeno, acabou por cair, e é com o Estado Novo que se vê obrigado a incorporar Fátima no discurso oficial e pôr Fátima ao seu serviço. Salazar e o seu velho colega de curso e de quarto, cardeal Cerejeira acabaram por fazer de Fátima um pilar do regime corporativo que sucedeu à primeira república.
Na clausura, Lúcia cresceu. Aprendeu a ler e a escrever, de acordo com as suas palavras, "fazendo a vontade expressa pela mãe divina".
Mulher sensível e inteligente, simples mas concisa, haveria pelo resto do século XX de fazer aquilo para que o divino a chamara. Nas suas memórias conta que a virgem lhe apareceu outras vezes no carmelo.
É nos anos 30 que Lúcia recebe do bispo de Leiria-Fátima a ordem para escrever as suas memórias. Obedientemente o faz, tendo essas memórias sido passadas a livro de acesso público.
As memórias da irmã Lúcia, que agora leio, são pois muito formatadas pela severa educação religiosa imposta, mas surpreendentemente, a Lúcia menina ainda lá está.
Os detalhes desta escrita são um fresco notável: o relato psicográfico dos primos, os relatos em primeira mão de tudo o que vivenciaram e sofreram é impressionante.
E é também um retrato datado, de um Portugal que em grande medida já não existe.
Os relatos das provações e dos sacrifícios pedidos àquelas crianças é assustador:
de cordas cingidas ao corpo para causar dor, à sede forçada, aos interrogatórios da igreja e das autoridades, o sacrifício imposto aquelas crianças foi aterrador. Até a visão do inferno que a virgem lhes mostrou quase as matou de susto.
Se é este o Deus dos católicos, mais a sua corte celestial, então permanece um deus sádico e cruel. Mais uma vez o que salva o mundo é o divino feminino. Na mensagem de Fátima, apesar do sofrimento, o que ecoa até hoje é sobretudo a doçura da Nossa Senhora.
Ninguém sabe se aquilo que as três crianças viram correspondente à estátua feita de cedro do Brasil e que hoje está na capelinha das aparições. Dizem alguns que não, que é uma cópia da Nossa Senhora da lapa. Mas o sorriso daquela virgem sempre me comove, porque me relembra quando o vejo, outro sorriso que deixei de ver em 1985: o sorriso da minha mãe.
Post sriptum: a Fina da Armada, no seu livro "Fátima, o que se passou em 1917" coloca a hipótese de se ter tratado de um fenómeno OVNI. Que aquilo que as crianças viram foi muito diferente da virgem Maria que hoje todos reconhecemos. Há registos escritos nos interrogatórios da época que descrevem uma "senhora" muito diferente dessa. Não sei, não adianta tentar explicar o inexplicável.
Mas uma coisa é inegável; as 70.000 pessoas que no dia 13 de Outubro de 1917 viram o sol a mudar de cor e a "bailar", ou a chuva de pétalas que tentavam apanhar e que se desfaziam antes de lhes tocar. Fátima, a bem ou a mal, hoje é eterna. Pelo menos enquanto houver cristandade.

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