domingo, 21 de março de 2021

Júpiteres quentes e questões humanas


 Recordo o tema, quando no início dos anos 90 falei com o Nuno acerca deste assunto, e a estranheza e quase repulsa que me causou na altura.

A descoberta era recente, e contradizia em tudo a velha teoria de Laplace da formação do sistema solar, que procurava uma explicação lógica para essa composição, projectado como modelo plausível para outros sistemas estelares.
A teoria de Laplace é na sua essência simples: fala da existência de uma nuvem primordial de gás e poeira, sobretudo hidrogénio, e alguns materiais pesados. A gravidade terá feito o seu trabalho: no centro acumulou quase todo o hidrogénio numa bola imensa, que, sob o seu próprio peso entrou em ignição nuclear, mantendo-se então como a estrela central que contém quase toda a massa do sistema solar.
Essa ignição terá criado o vento solar, e enquanto a nuvem girava vagarosamente, o vento solar ia varrendo para longe os detritos restantes. Os pesados ficaram perto do centro. Ferro, níquel, cálcio, carbono, azoto... Deram origem aos planetas terrestres, ou sólidos:
Mercúrio, Vénus, Terra e Marte.
Os materiais mais leves teriam sido atirados para mais longe, para as regiões geladas, onde deram origem aos planetas gigantes gasosos: Júpiter, Saturno, Urano e Neptuno. Plutão era uma espécie de planeta pária, classificação que aliás perdeu.
É um modelo elegante e simples que respondia à necessidade de explicação da organização do nosso sistema solar.
E foi o Nuno que fez cair num instante este modelo confortável e apreendido durante muitos anos.
Em jovem tive uma paixão enorme pela astronomia, que aliás nunca perdi.
As vicissicitudes da vida e uma total falta de jeito para números levaram a que a astronomia nunca tenha passado da paixão.
O Nuno é um velho amigo que transformou a sua paixão por uma sólida carreira de investigação em astrofísica, pertencendo a uma equipa pioneira de pesquisa de planetas extra-solares, que deterá 50% da descoberta de todos esses exoplanetas, trabalho aliás em curso neste momento.
E foi o Nuno que num segundo me derrubou o modelo certinho da teoria de Laplace, que eu tinha adoptado com naturalidade. A verdade é que tinham acabado de descobrir esses Júpiteres quentes, planetas gasosos gigantes, que em vez de orbitarem as suas estrelas a uma distância segura, pelo contrário se encontravam muito próximos das suas estrelas, a menos de uma unidade astronómica, alguns com períodos orbitais de poucos dias! Como é que esses mundos não evaporavam?!
No entanto as medições não enganavam. As leis de Newton não dão margem para erros, e os Júpiteres quentes existem mesmo.
Apesar da surpresa inicial, que expressei na altura, nem por um momento pensei duvidar do que o Nuno me disse. Ele é um profissional, dedica a vida ao seu trabalho, tem acesso a telescópios e instrumentos de topo, e não serei eu a duvidar. A velha teoria de Laplace, se não está errada, no mínimo estará incompleta.
Tudo isto a propósito de alguns questionamentos que às vezes um ou outro amigo me colocam.
A idade trouxe outras paixões, outros interesses, e já em adulto resolvi estudar outras questões, nomeadamente humanas.
São vários anos de estudo, de trabalhos de campo, de observação, discussão com pares.
É do domínio das ciências sociais, como a sociologia, a antropologia ou a história, estudar aquilo que é da cultura e do humano.
O nosso laboratório é o campo, é ir viver para o meio dos nativos, (que tanto podem estar no meio da Amazónia como num bairro de uma cidade qualquer), e estudar a sua organização social, as suas regras de parentesco, os seus sistemas simbólicos, que incluem crenças e religião, e tudo o que faz funcionar qualquer grupo sócio-historico.
Todo esse trabalho de estudo feito pelas ciências sociais é tão antigo quanto o das ciências físicas, e da mesma forma que nessas ciências existe diálogo entre as diferentes disciplinas, como a química, a física, a biologia, a astronomia, também, também na antropologia, na sociologia, psicologia, na história existe esse diálogo, num exercício e numa tentativa de compreender esse ser social complexo que é o Ser humano.
Exercício aliás difícil: porque é doloroso olhar para as nossas entranhas. Porque é difícil sair de nós mesmos, de nos questionarmos, de sair da zona de conforto, de olhar de frente medos, fantasmas e demónios.
A antropologia gosta do micro-fenómeno, a sociologia prefere os grandes números, a história traz profundidade temporal, a psicologia traz os processos mentais, sobretudo os mais profundos, subconscientes ou mesmo inconscientes, do indivíduo para o grupo, e com isso se pretende ter um retrato aprofundado e sólido daquele a quem Desmond Moris chamou "Macaco Nu". O sapiens sapiens. Nós.
Estamos longe de poder ter para as humanas um paradigma que sequer se aproxime das ciências físicas, e aqui há uma ressalva: o método científico, tal como tem vindo ser construído desde o século XVIII não se aplica às questões humanas.
Nessas a ética tem que preceder sempre a ciência.
Nas ciências físicas não existe qualquer impedimento ético, digamos em estudar uma pedra. Podemos ataca-la com ácidos, bases, forças, radiações, reduzi-la aos seus componentes básicos...sem qualquer drama ético ou moral.
O mesmo não se pode fazer nas humanas: Mengele fez imensa ciência com os prisioneiros dos campos de concentração nazis, mas totalmente destituído de ética. Pavlov fez experiências com cães e com primatas que fizeram avançar a ciência, mas que hoje não são toleráveis por imperativos éticos. A teoria preferida do Hitler era o darwinismo social, uma apropriação abusiva do Darwin para fins políticos de controlo e de extreminio daqueles que foram abusivamente classificados de "mais fracos".
Nas humanas o caminho tem que ser outro, já vem sendo trilhado há muito, e representa um trabalho sólido e profundo que muitas vezes escapa ao comum cidadão.
Vem isto a propósito do seguinte: tenho um ou outro amigo, alguns até com formação académica nas exactas, que costumam falar com alguma presumida autoridade sobre questões do domínio das humanas. Não é o caso do meu caro amigo astrónomo/ astrofísico, diga-se.
Mas às vezes é confrangedor ver gente que, por ter formação nas exactas, se refere a questões das humanas como se dominasse totalmente o assunto.
Alguns até são "opinion makers". Gente que, por ter estudado medicina, química ou física, acha que sabe tudo sobre questões humanas, e pode falar de cátedra, segurissimos das suas "teorias de Laplace", não lhes passando pelo espírito sequer que não vislumbram mais do que a espuma dos dias, e que a corrente de fundo lhes escapa totalmente.
Depois é vê-los por aí a debitarem opiniões de "tudólogos", a falarem de questões sociais e humanas, sem fazerem a menor ideia da superficialidade com que falam, muitas vezes num anti-clericalismo básico, num darwinismo social confrangedor, agarrados a teorias atomistas e a modelos de Laplace ou de Broca, mas incapazes de aceitarem que estão a falar de cátedra sem terem a menor noção das barbaridades que dizem.
E não é porque os cientistas sociais saibam tudo. Eles estão cheios de dúvidas. A diferença é que são dúvidas esclarecidas, de quem trabalha os temas, vai para o campo, usa as ferramentas disponíveis e possíveis para a sua análise, e que por essa via detém um conhecimento da corrente de fundo que esses "tudólogos" nem sonham.
Podiam começar pelo René Descartes e a sua dúvida metódica. Está no "Discurso do Método". A natureza humana é propensa à crença. Nós queremos sobretudo acreditar. E a revolução da dúvida metódica é essa: em ciência tudo é falso, e só será verdadeiro quando resistir à demonstração de falsidade.
Em vez de ficarem abespinhados quando confrontados com as suas crenças, que têm como certezas, talvez seja mais construtivo manter abertura de espírito e perguntar a quem dedica a vida a essas matérias. Outra hipótese seria voltar à academia e abrir o espírito para outras vertentes do conhecimento.
Branislau Malinowsky, pai da moderna antropologia, começou por se doutorar em física. Só depois se interessou pelas ciências humanas, tendo o seu trabalho fundado a moderna antropologia.
Em vez de repudiar novas abordagens, ficando algumas pessoas zangadas, talvez fosse melhor abrir o leque, aceitar que o racionalismo e o atomismo estão longe de explicarem tudo, que a ciência que explica os movimentos dos planetas é excelente, mas não explica de todo a diversidade e complexidade humana.
É que afinal, os Júpiteres quentes existem mesmo, e às vezes a teoria do Laplace pode estar errada, ou no mínimo incompleta!

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