quinta-feira, 8 de abril de 2021

Mar da Palha

Praia do Samouco. 9.30 da manhã. Dezenas de mariscadores, muitos deles ucranianos, avançam pelo Tejo em maré vaza. A amêijoa japonica, contaminada ou não por biotoxinas, contaminada ou não pelos temíveis metais pesados é uma tentação irresistível para quem tem que garantir sustento. O número de mariscadores é tal que já há uma roulote de comes e bebes. O lixo abandonado é mais do que muito. Um homem de etnia cigana com uma menina dos seus 6 anos insiste para que a pobre criança beba uma lata de coca cola pela manhã. Para me reduzir a angústia comemoro em silêncio a recusa da criança em ingerir tal veneno, preferindo a sandes que tinha na mão sujita.
Aumentar os impostos sobre bebidas açucaradas, ou simplesmente proibir tais venenos? Para quando fazer com o açúcar e os ácidos o mesmo que se fez com as gorduras hidrogenadas?! Nos rostos de todos o medo ou a desconfiança pela minha pessoa por não saberem quem sou. Talvez um inspector da ASAE?! Vou dando os bons dias a um ou outro para quebrar o medo. Relembro um trabalho etnográfico feito por uma brasileira na Mouraria: sou estudante, estudo o Tejo. Se alguém um dia me perguntar, está será a resposta.

 

sábado, 3 de abril de 2021

Mata-velhos e Pedaços de Telhas

A estória que vos vou contar passou-se há muito, muito tempo, numa galáxia distante. Nessa galáxia havia um planeta, e nesse planeta havia um país chamado Tugalistão. Ora aconteceu que nesse país havia uma fábrica de fósforos, e o governo ditatorial da altura quis proteger a sua fosforeira e ganhar uns trocos em multas. Daí fez uma lei a proibir foguear com isqueiro. Isqueiro só com licença ou, como estava escrito na dita lei, "debaixo de telha". Daí que o comum e ardiloso cidadão da dita república passou a trazer consigo um pedaço de telha, e se quisesse acender o seu cigarro com isqueiro, tratava de fazer isso debaixo da telha, driblando assim os policias! Não faltava expediente, nem ao estado, nem ao desembaraçado cidadão. Acontece que nesse tal Tugalistão houve uma revolução e a ditadura deu lugar à democracia.

Claro, a tal lei ridícula foi abolida. Aconteceu que nesse país, há muito, muito tempo, a democracia descobriu que as crises não conhecem regimes. A penúria voltou a bater à porta, e o tal governo da jovem democracia lá teve que arranjar dinheiro e expedientes para o sacar do bolso do cidadão contribuinte (ou contribuis ou levas no toutiço!). Vai daí uma lei nova: aos 50 anos passas a ser um geronte perigosíssimo e como tal tens que renovar a carta de condução. A coisa funcionava assim, nesse tal planeta numa galáxia distante, há muito, muito tempo: o médico de família não passa o atestado de aptidão médica. Para isso existem escolas, que diabo! Vais à escola (que cobra os seus honorários, que ninguém trabalha de graça). Pagas também ao médico, que nem te põe a vista em cima, mas pagando-lhe os 15 euritos te passa o respectivo atestado. E ganha o estado, que ele também não trabalha de graça. Ou seja, ninguém verificava se estavas apto ou não. Pagavas não bufavas, e pior, já não havia pedaço de telha que te valesse. Os computadores haviam chegado ao Tugalistão, e a democracia, já se sabe, é sempre mais eficiente do que ditaduras catéticas!
Mais curioso ainda, no tal país há muito, muito tempo, numa galáxia distante, o mesmo governo resolveu que os velhotes analfabetos vindos da tal ditadura também mereciam poder conduzir. Vai daí, trataram de parir uma lei que permitia que os tais velhotes comprassem uns carrinhos de baixa cilindrada, e os pudessem conduzir sem qualquer passagem por uma escola ou estudo de regras. Aquilo sempre dava para vender carros mata-velhos a bom preço, e ainda para papar as reformas dos mesmos.
Que o tal Tugalistão se tinha entretanto enchido de auto-estradas perto dos velhos caminhos onde os velhos sempre andaram, a pé, de burro, ou vá lá, de bicicleta, ninguém deu por nada. Agora com auto-estradas junto aos velhos caminhos, era ver os velhos a entrar em contra-mão nas auto-estradas, matando-se e matando os incautos apanhados numa contra-mão. Mas isso são apenas danos colaterais, que raio. Afinal o que importava?! Importava apenas enfiar as mãos nos bolsos de toda a gente e roubar à descarada. Mas atenção, com uma bela capa disfarçada de lei que toda a gente fingia que era muito séria e justificada. Felizmente, volto a frisar, isto foi há muito, muito tempo, e numa galáxia muito, muito distante.

A Culpa é do Algoritmo?

Vamos primeiro à definição do bicho :"Algoritmo é uma sequência finita de instruções bem definidas e não ambíguas, cada uma das quais devendo ser executadas mecânica ou electronicamente em um intervalo de tempo finito e com uma quantidade de esforço finita".

Posto isto, trata-se de uma rotina bem estabelecida em que, de forma mecânica ou electrónica - actualmente refere-se sobretudo a programação informática, definida por alguém e escrita, pelo próprio ou por procuração, para processar um determinado conjunto de dados. Dito de outra forma, de um lado entram dados em bruto, a máquina processa de acordo com o algoritmo e devolve os dados já processados. Pense em algo do tipo: 1, 1. Depois defina o algoritmo, pode ser um "+". O resultado? 2, obviamente.

Serve esta simples verdade de La Palise para evidenciar o que é simples: a culpa nunca é do algoritmo, é de quem o faz. O algoritmo, tal como o computador onde ele corre não tem conhecimento nem consciência. Ele apenas sabe fazer operações aritméticas ou operações lógicas. Olhando para a imagem ressalta algo: um processamento algorítmico não tolera o acaso. Tudo tem que ser previamente previsto e determinado. O melhor exemplo disto vem dos primórdios da informática, quando factos muito evidentes por vezes escapavam ao programador. Era o clássico "divisão por zero". Dividir um número qualquer diferente de zero por zero equivale a criar um infinito. Os computadores queimavam por não terem sido previamente programados para tal erro. Olhando de novo para a imagem ressalta de novo outra evidência: o acaso e a liberdade não cabem na frieza lógica de algoritmos e computadores. Não, não é o algoritmo nem a "inteligência artificial". Quem manda ainda, para o melhor e para o pior são as pessoas. Algumas pessoas. As que têm sede de poder e que gerem a seu belprazer os dados que nós, de forma consciente ou nem tanto vamos dando de graça. Eles dão-nos voz e um espelho bom para o nosso ego. Mas não é de graça. O click no gatinho fofinho, o like na notícia, verdadeira ou falsa, a avalanche de informação que lhes damos em troca desse veículo tem um preço. A época da ingenuidade pode finalmente ter um fim. A bem da nossa humanidade, no melhor que ela possa ter, ainda vai estando nas nossas mãos.

 

Terras-fetiche


Rio de Onor é terra fetiche para a antropologia portuguesa.

Aldeia fronteira com Espanha, serve para pôr em evidência anacronismos que parecem naturais para os poderes remotos de Lisboa e Madrid. Ali a fronteira também existe entre as duas Onores, mas tinha, e ainda tem, significados distintos e por vezes opostos aqueles que designam nações ou países. "Para lá do Marão mandam os que lá estão", ou, recitando o mantra que o nosso senhor Malinowski nos ensinou, "from the native point of view", vistos a partir da varanda, "para cá do Marão mandam os que cá estão".

Em rio de Onor ser português ou espanhol pouco importava para quem vivia em comunidade desde tempos remotos. Falava-se um dialecto derivado do asturo-leonês, partilhavam-se terras, lameiros, rebanhos, fornos comunitários. E se Madrid ou Lisboa impunham identidades diferentes, "os que lá estão" adaptavam-se às leis vindas de longe: quando se impunha uma fronteira à séria, havia sempre um contrabandista, um polícia (não raras vezes irmãos, ou primos ou parentes próximos) que lá iam driblando leis e fronteiras e tirando partido de uma linha imaginada por outros que também ali queriam mandar.
Hoje a realidade é outra, na União europeia não há fronteiras internas. Mas a realidade não se mede por instantâneos, há que olhar para um tempo longo e tentar apreender contemporaneidade. Ontem Rio de Onor português ou a Rihonor de Castilla estiveram como sempre juntas a seguir o duelo simbólico entre Portugal e Espanha. O futebol encarna hoje antigas dinâmicas identitárias tribais. Como eu teria gostado de ter estado ente eles a tomar o pulso a esses sinais de pertença. Quem terá vencido ali? Portugal, Espanha, ou, à semelhança do jogo, houve também ali um empate?! Saudades das aulas de antropologia!

 

A Raiz do Mal


Hoje imagino-me entrar por esta porta. No meu espírito paira a ideia estranha que muito do pó que aqui pisam são cinzas daqueles que neste lugar foram assassinados e queimados nos infames fornos crematórios.
Infâmia, uma e outra vez repetida. Não quero cair no erro fácil e perigoso de acreditar que a maldade reside apenas e só nos outros. Essa é justamente a ratoeira onde a humanidade tem caído uma e outra vez. Basta imaginar: e se de repente um poder imenso, sem limites nem sanções me caísse nas mãos, que faria eu? Eu, que tantas vezes me indigno, que tantas vezes penso que há gente que não merece existir; seria eu capaz de renunciar ao instinto básico e ao ódio, ou cairia facilmente nesse inebriante ódio que endeusa o Eu e demomiza o Outro? Que mistério é esse que leva uns á loucura e á orgia da morte, e outros á sobriedade e á coragem de lutar por um bem maior? Não, a solução nunca é acreditar que só os outros são detentores do mal. Essa é na verdade a raiz do mal. Não foram demónios que desceram á Terra para espalhar a morte: foram homens comuns a quem foi dado poder e que cederam aos instintos básicos, acabando por fazer coisas incomuns. Não é só o mal que habita os outros que nos deve manter vigilantes: é o mal que a qualquer momento nos pode seduzir que nos deve fazer reflectir.
 

Homens e Papagaios

 E se um homem e um papagaio forem afinal a mesma coisa?!

Chama-se Philippe Descola, é francês e foi viver entre os índios Hashuar do Equador para os estudar. Durante o seu estudo percebeu que, à semelhança de muitos outros povos não ocidentais, os Hashuar não possuem a palavra "natureza" pelo facto de não se quererem nem se sentirem diferentes ou opostos a ela!
Para os Hashuar um homem e um papagaio são a mesma coisa! Quando o Descola lhes fazia ver que um papagaio era verde, tinha penas e voava, e que um homem não tinha penas, não era verde e não voava, os índios ripostavam: sim, nós sabemos. fisicamente somos muito diferentes. Mas na essência, na alma, um índio e um papagaio são a mesma coisa.

Ora, esta visão do mundo e da nossa relação com ele pode ser muito didáctica e proporcionar uma forma de relacionamento com a Terra mais equilibrada e saudável. O que se retira daqui é o seguinte: a nossa relação com o mundo é, como não poderia deixar de ser, uma construção cultural.
Acontece que na cultura ocidental a nossa relação com o mundo é de conquista e domínio. Por exemplo, na Bíblia está escrito "Crescei, multiplicai-vos e dominai o mundo". O que o sábio Deus não disse é que a Terra é finita, e que essa visão pode ser uma catástrofe anunciada.

Na tradição ocidental e sobretudo a partir do século XVIII o ocidente criou a dicotomia "nós humanos" vs "eles animais, natureza". Nós racionais, eles irracionais. Nós seres com sentimento e emoções, eles não. Eles não sentem, nós sentimos. Curiosamente no ocidente a nossa construção social reconhece que na fisicalidade todos somos iguais (somos todos feitos dos mesmos átomos e moléculas), mas na espiritualidade somos diferentes da suposta "Natureza".
Uma visão exactamente oposta à visão dos Hashuar que dizem que na espiritualidade somos todos iguais. A sua cosmogonia é muito mais equilibrada, homem, natureza, rios ou papagaios, somos tudo a mesma coisa.
Eles não existem para crescer, multiplicar-se e dominar o mundo. Eles retiram do seu meio apenas aquilo de que necessitam para viver e não usam a lógica da acumulação, do lucro ou do domínio. Vem isto a propósito das infames touradas: O touro não é, na visão proposta dos Hashuar, muito diferente de um homem: ele sente, tem medo e quer viver em paz como qualquer um de nós.
A algumas pessoas convém acreditar no contrário. É verdade que touradas são tradição. Mas também é verdade que a cultura é dinâmica, não é algo estático no tempo. A civilização constrói-se contra a tradição.
Já foi tradição matar condenados em praça pública, lutas de gladiadores, escravatura, proibição de voto às mulheres, só para dar alguns exemplos. A tradição, quando indigna e cruel deve ser deixada no passado. Nada justifica hoje o espectáculo cruel de tortura e morte animal. Isso não nos faz grandes: ao contrário, mantém-nos presos a um passado cruel que todos nós podemos hoje repudiar.
É verdade que o Homem se ergueu enquanto tal quando começou a comer carne, e que todos nós vivemos num universo cujas regras e leis não escrevemos. Mas também é verdade que esse mesmo universo nos permite criar quadros conceptuais de rosto mais humano. Há uma fronteira clara entre matar por necessidade de alimentos e matar por prazer sádico.
Os Hasuar matam e comem animais. E se entendo que a primeira me repugna menos, ainda assim podemos imaginar um mundo melhor onde um dia não será necessário matar para viver. Por isso manifesto a minha vontade: a tourada é um espectáculo cruel e indigno e deve ir parar ao caixote do lixo da história.

Guerras Subtis

Quando a guerra dos sexos se veste de flores ou de plantas comestíveis.

Por cá, as mulheres competiam ou cooperavam entre si para terem jardins floridos e bonitos. Pelo contrário, os homens desdenhavam disso; para eles a terra era preciosa demais para ser desperdiçada com flores.

Eles cooperavam entre si pela troca de plantas, sementes ou árvores de fruto que garantissem comida na mesa. O engraçado disto é que eu participava desta guerra sem saber, e herdei-a sem me dar conta disso. No nosso quintal as manas plantam flores. A erva da fortuna, que eu detesto, fica, em memória da minha irmã Marília, que a plantou e de que gostava tanto.

As outras flores ficam, por carinho e respeito pela Maria, dona oficial de uma casa que continua na prática a ser de todos nós e que nesta altura vibra de vida.

Casa quase cheia, com gente e com memórias dos que já partiram. As flores servem também para honrar os mortos, são postas na campa da família. Adivinho que nesse local improvável onde agora se encontram que a mãe e a mana as apreciam, e que o pai continua a rir e a abanar a cabeça que não, que a terra deve servir apenas para produzir alimentos.

Eu herdei também isso do pai: por mim o quintal só teria estas plantas; os pessegueiros, as nogueiras, as nespereiras, o pé de fisalis, que eu e o pai plantámos, ou o aromático pé de poejo, planta aromática e medicinal, ameaçada de extinção, e que ali nasceu espontaneamente.

Dou espaço para as flores (eu mesmo plantei um pé de hera que trouxe da quinta da Moita Longa e que agora tenho que desbastar, é bonita mas também é um parasita que mata tudo o que abraça), mas prefiro plantas que dêm frutos. Feliz no meu cantinho a dar colo à minha sobrinha-neta Ava.


 

O Boi

O boi fica no campo. Ele olha para o céu com desdém: ele não sabe nem quer saber que os pontos mais brilhantes lá em cima são outros tantos mundos. Ele não sabe, nem quer saber, que a Terra gira em torno do Sol.

E porque haveria ele de querer saber de tais assuntos?! Ele só quer ser um boi: a ele lhe chega ter o seu prado para ruminar erva e muitas vacas para poder cobrir.

Assim é a natureza dos bois!

sexta-feira, 2 de abril de 2021

A Culpa é do Lagarto

Hoje escutei um estória estranha e que me remeteu para um passado longínquo: quando era criança as mulheres da família diziam que matavam as cobras porque elas eram matreiras e vinham à noite ter com as mulheres que amamentam, agarrando os seios e roubando o precioso leite dos bebés!
Claro que eu, na inocência da infância acreditava piamente na estória. Em adulto sei interpretar o simbolismo carregado: evidentemente nenhuma mulher podia ser enganada por uma cobra ao ponto desta lhe sugar o leite sem dar por isso!
Claro que a "malvada cobra", é o símbolo do falo, porque uma gravidez logo a seguir a um parto faz secar o leite materno. A "cobra" é apenas o pénis simbólico do homem, que ao fazer amor com a mulher a faz perder o leite. Hoje ouvi uma estória semelhante: alguém viu um lagarto verde e logo se prontificou a apedreja-lo, porque sabia de uma estória de uma rapariga que ficou com a vagina estragada porque um lagarto a sentiu menstruada e tratou de a atacar entrando-lhe pela vagina.
Fantástico descobrir no Portugal profundo que em pleno século XXI estas crenças ainda subsistem. Não fui contrariar a estória, mas impedi que o pobre e belo animal pagasse por conta de medos inconscientes reflectidos em mitos que deviam ter ficado no passado.
Assim se destrói a nossa biodiversidade. Comigo não! Educadamente, mas com firmeza, nenhum animal silvestre pode ser sacrificado à minha frente!

Panteão

O panteão deve servir como repositório da nossa identidade enquanto povo. Pela definição de panteão, ou mesmo comparando com outros, apenas devemos depositar lá os maiores ente os maiores. E apenas quando o tempo e a história demonstrarem que se tornaram símbolos da nossa cultura e de forma bastante consensual.

Nunca achei que o Eusébio merecesse tais honras. Oficialmente foi para lá por ter dado muitos pontapés numa bola. Creio no entanto que no inconsciente nacional está implícito um pedido de desculpas pela escravatura negra que Portugal praticou durante séculos. Um negro no panteão nacional sublima esse desconforto histórico. Se tivesse sido um homem das letras, da ciência, da arte ou da cultura nada teria a opor. Mas era um homem do futebol. O seu panteão era o estádio do Benfica. Já quanto à Amália não me repugna, embora acredite que deveríamos ter esperado mais tempo. Seria esse o factor diferenciador. No entanto a Amália incorpora a essência da cultura portuguesa do século XX e creio que todos estaremos de acordo, está acima da luta política e será lembrada pelos séculos.

Zeca, Salgueiro Maia, ou Soares são figuras incontornáveis da nossa vida política, mas não creio que atinjam "alturas de incenso". A grande figura que lá colocaria seria Aristides de Sousa Mendes: humano e justo numa das épocas mais negras da história, ficou só contra o mundo, mas de bem com a sua consciência. Pagou com a miséria, sua e da família o facto de ter sido justo e humano numa altura em que o mal andou à solta. Talvez não tenha sido santo, mas os 30000 que salvou são os melhores advogados.

Neste país de hipócritas, governado por elites pífias e habitado por um povo inculto, mais disponível para paixões futebolísticas do que para a poesia, o panteão corre o risco de se tornar num símbolo de vulgaridade e desdém de um Portugal que teve um papel determinante no mundo.

No fundo o panteão é apenas um espelho que apenas reflecte aquilo que somos. Gostamos nós de ver aquilo que ele reflecte? Quem lá queremos no futuro? Aristides de Sousa Mendes, ou deixamos o espaço (que é curto) para lá depositarem o CR7 ou o Mourinho? Vamos escolher, ou nem sequer merecemos ter um tal monumento?

Velhos Gigantes

 


Gigantes do passado, vencidos pelo tempo.

Há um moinho de vento sem engenho que fica no Sobral da Lourinhã. Morreu com o moleiro. Os restantes são ao lado, na Pinhoa.

Em vez de abandonados foram patrimonizados, com excepção de um que foi transformado em casa de habilitação. Serviram desde o século XV, as velas são adaptadas das velas das caravelas. Até há algumas décadas toda a gente semeava trigo e milho que depois era levado ao moinho.

Em criança deslumbrava-me com a beleza e elegância destes moinhos e fazia réplicas deles. O fascínio pelo vento mantém-se até hoje. As cabaças faziam o moinho "cantar". Dentro do moinho o moleiro sabia a direcção e a intensidade do vento pelo cantar das cabaças e pelo galo de ferro no topo do capelo.

Se o moleiro morria o herdeiro cruzava a porta do moinho com uma vara do engenho. Durante o luto a boca das cabaças eram tapadas e o moinho não "cantava". A vida seguia o seu curso mas assinalava-se o período de luto. Hoje sobrevivem os moinhos patrimonializados num esforço de salvar a memória. Ao longe outros gigantes ainda maiores assinalam o curso inexorável do tempo: as eólicas aproveitam o vento, hoje como ontem. Esbeltas e gigantes, usam o vento para produzir electricidade.

Um Estranho numa Terra Estranha

 

15 de Setembro de 2018 
Conteúdo partilhado com: Público
Hoje resolvi fazer um passeio matinal pelas redondezas do Casal Caldeira, terra que me viu nascer e onde vivi até que as contingências da vida me levaram para Lisboa. Trilhei estradas que já não trilhava há 43 anos, quando criança apascentava um rebanho de ovelhas levando-o às terras de pousio ou onde a seara já tivesse sido colhida e onde os animais pudessem comer os restos e as ervas, mato ou folhagem.
De batatas deixadas na terra, às parras das videiras já vindimadas, até às ervas daninhas, o rebanho medrava com as sobras que ninguém queria, definindo a posição social do pastor, pouco acima dos indigentes, ou como se designa nos EUA, de um obo. A estradas ainda são as mesmas, a paisagem rural é outra. Onde o mar de eucaliptos não chegou sobra um pomar de maçãs reinetas e inúmeros abobrais. Furos de água incontáveis para ir buscar recursos hídricos onde as raízes dos eucaliptos não chegam.
Num pomar vejo um homem num trator a alguns metros: boné "bico de pato" e de rosto cabisbaixo, não o reconheço, e recordando uma velha máxima desta terra, "quem vai vai, quem está está". Num dos caminhos sobe um carro, mas a distância não deixa ver que é, nem isso me importava. Resolvi pegar no telemóvel e registar em fotos uma paisagem que já me foi familiar. Caminho mais umas centenas de metros, até que resolvo voltar para trás. Escuto vozes vindas do carro que tinha subido minutos antes. Nada mais do que um rosto conhecido, uma "madrinha de empréstimo", já que me habituei a tratá-la desta forma porque as minhas irmãs, todas mais velhas do que eu o faziam, apesar de que só a minha irmã mais velha ser de facto afilhada. Mas nesta terra, tal como em outras, o apadrinhamento revestia-se de hierarquia social vestida de solidariedade e de esperança. Quem tinha terras e por isso bens podia compartilhar e apadrinhar, fornecendo trabalho assalariado a quem nada tinha de seu. Foi com o prazer de sempre que cumprimentei a "madrinha" e o Xico, homem de uma aldeia próxima e um pouco mais velho do que eu e que já não via há uns 20 anos.
Da conversa animada ficou-me a sensação de me ter tornado um estranho numa terra estranha, parafraseando o título de um livro de ficção científica com o mesmo nome do Robert Heilein, que eu li em criança naquele local enquanto apascentava as ovelhas. O homem do tractor era apenas um primo afastado que não me reconheceu e que ficou furioso por me ver a fotografar a paisagem - onde ele não estava.

Fiquei incrédulo! Mas já não se pode passear nos campos sem causar estranheza ou medo?! As pessoas agora em vez de falar e cumprimentar, mesmo pressupostos estranhos, fingem que não vêem? Não era assim há 50 anos. A explicação veio de novo pela madrinha na conversa alegre, como sempre foi: o primo "Esquim" já foi assaltado, e essa é uma situação recorrente na zona. O pessoal anda assustado. Isto é surpreendente para mim, a região da Lourinhã está longe do envelhecimento e desertificação que outras regiões do país sofrem. Chegámos à contemporaneidade: um moderníssimo telemóvel, alfaias agrícolas igualmente modernas, mas as relações humanas permanecem num registo de medo e desconfiança, aliás justificado. Vai longe o tempo da porta deixada apenas no trinco ou da chave debaixo do tapete.

Hoje no Casal Caldeira quem cá mora ou passa temporadas vive no medo: dos fogos, já que os eucaliptos estão colados às casas, e dos estranhos, cuja intenção desconhecemos. E de repente sinto-me um estranho numa terra estranha. Como o personagem do livro que li em menino. Só que não estou em Marte. Estou mesmo na terra que me viu nascer. É verdade, a mesma água não corre duas vezes por baixo da mesma ponte. O Casal Caldeira continua a ser Casal Caldeira: mas não aquele que eu habitei.

Levantou Poeira



 Ah, veio a chuva! A poeira vinda do deserto finalmente foi lavada.

Se os carros ficaram sujos de lama vinda do céu com as primeiras águas, a chuva foi todavia suficiente para lavar também essa poeira que deu ao céu um tom de sangue velho e de chumbo, uma atmosfera pesada, com cheiro agoirento, pondo olhos e pulmões a arder.
Dizem que o deserto logo abaixo de Gibraltar é belo: que não há céu estrelado mais intenso, que o nascer e o pôr-do-sol visto da vastidão do Saara são majestosos, que não importa saber que depois de uma duna só existe outra duna, porque o deserto serpenteia, é hipnótico, sedutor, cativante. Talvez, não sei.
Para mim, nascido e criado junto do Atlântico e bafejado pela sorte de uma atmosfera quase sempre límpida e pura, de um azul intenso cúmplice entre o céu e o mar, com o cheiro da maresia, nunca questionei se os ares de outras paragens seriam igualmente doces.
Não são: quando pela primeira vez me afastei do mar percebi que, a despeito de grandiosas e belas cidades, ou até de planícies imensas, ou mesmo montanhas imponentes, a atmosfera é aí, longe do mar, diferente. Mesmo sem o peso da poeira de um qualquer deserto, nada se compara à doçura fresca da brisa do Atlântico, vinda quase sempre de noroeste. Nem sequer a opulência e grandiosidade de qualquer cidade consegue esconder o seu ar pesado, quais damas de outras eras, empoadas e ricamente vestidas, mas a disfarçar odores com água-de-rosas! Prefiro ar agreste mas puro, a cheirar a sal e iodo.
Por este motivo decidi há muito que seria incapaz de viver longe do mar, e talvez pelo mesmo motivo, nunca senti grande vontade de conhecer a vastidão do Saara, afinal aqui tão perto.
Além do mais hoje é cemitério de gente que foge do sul, para acabar morto na travessia do mar do meio, ou escravo num qualquer mercado líbio. Nem só de víboras enterradas na areia se veste a morte no deserto.
Aliás, as víboras são o menor dos perigos desse oceano de areia.
Um dia irei conhecer, tirar a prova dos nove, ou até a prova real pela inversa. Dizem que ali, o melhor de tudo até podem ser as pessoas, os seus hábitos e culturas, mas isso já se sabe, depende de que zona do deserto estamos a falar, porque ele é tão vasto e imenso quanto as populações que por lá vivem.
Desta feita o gigante dourado juntou-se ao vento suão e veio até nós: atirou sobre Portugal uma nuvem de poeira, abrasiva, quente e agreste, com uma espécie de calor de Verão temporão, fora de época, que me fez lembrar o quanto gosto da brisa atlântica!
A noite trouxe finalmente o alívio, feita de chuva e ruídos, e de um sono agitado. Pareceu-me escutar as vozes que apenas costumo escutar quando procuro refúgio no canto onde tenho as raízes. Nesta noite estiveram aqui comigo - dizia eu gostar de casas novas porque não têm fantasmas ! Ao contrário, eles afinal são livres, sem o peso da matéria, e vagueiam por onde lhes aprovem.
A diferença é que, se no meu canto ancestral as suas vozes são pausadas, claras e serenas, aqui na casa nova não passaram de sussurros imperceptíveis. Quiseram dizer-me algo, mas fui incompetente. Desta vez não lhes entendi as vozes.
A chuva passou, a atmosfera voltou a ser límpida, fresca, cristalina e azul, as nuvens voltaram aos alegres pompons que correm sob um azul que é só nosso.
Instala-se uma serenidade quase impossível, feita de passado e presente, de solidão e saudade incuráveis, que vêm de dentro e se instalam sem pedir licença.
Passou um ano e meio de sobressalto, de vida parada, com uma peste ignóbil à solta, que já me (nos) roubou alguns (espero que não me roube mais ninguém), manteve as vidas em suspenso, obrigou a ponderar escolhas, e trouxe sobretudo uma clareza de espírito, uma consciência da finitude, da extrema fragilidade do ser, da ilusão perpétua que ajuda a carregar o fardo.
A vida hoje parece um mar da palha sereno, aqui na frente, a reflectir o céu e a cidade, suspensa na outra margem. Como um atleta que pára para retomar balanço, músculos tensos preparados para a próxima corrida.
A temível roda da vida, na sua fúria do nascer e morrer, vai voltar a girar.
Será que iremos retomar a normalidade em breve, depois deste sobressalto? Ainda há futuro? E que futuro será esse, quando perdemos milhares de vidas num só ano? Teremos aprendido alguma coisa, ou voltaremos a correr para os braços doces da fantasia?