quinta-feira, 25 de março de 2021

Do Verniz, ou da Falta Dele


 

A obra é de um dos maiores da literatura lusófona e brasileira: Jorge Amado. Chama-se "Tieta" do agreste, e conta a estória de uma jovem que descobre a liberdade e a sexualidade, e por isso é escorraçada da sua "cidade" (no Brasil tudo é cidade) em nome de uma moral falsa e bacoca.
O teatro da vida e da falsa virtude vence e a jovem espancada e escorraçada pelo próprio pai foge para a cidade grande. Tudo o que tem para vender é a sua beleza e juventude. À custa do seu corpo e inteligência vence, e passados 20 anos Tieta regressa rica à sua cidade, no Agreste, com intuito de se vingar.

Essa vingança acontece, mas não no sentido em que a nossa heroína a pensou. No final a cidade cresce, todos aprendem e crescem. A mensagem é aquela que Jorge Amado nos habituou: além da dureza da vida, no fim vem a redenção e a esperança.
A obra seria levada para o pequeno ecrã no final dos anos 80, numa novela memorável que segui com paixão e com o mesmo título: “Tieta do Agreste”. Tornou-se um clássico ver a deslumbrante Betty Faria no papel de Tieta, arquétipo da feminilidade e força das mulheres, brasileiras e não só.
Ficou na memória a sua irmã e sua antítese, a igualmente memorável Perpétua, beata falsa, interesseira, destituída de moral ou de ética, roída pela inveja contra a irmã rica, disposta a tudo para lhe roubar a fortuna e de novo a dignidade.

O fresco da adaptação da obra de Jorge Amado ficou plasmado também noutros personagens. Quem não se lembra do “coroné” e das suas "rolinhas", num papel excelente desse monstro da televisão e teatro que é o Ary Fontora?
Quem não se recorda da D. “Morzinho”, da histérica “Sinira”, da bela e apagada “Tonha”?
Recordo os episódios em que um charlatão chega ao Agreste, e do alerta que esse personagem constituiu: auto-denominado “Pastor Hilário”, representava o fenómeno então surgente das igrejas neopentecostais ao Brasil e do perigo que essa gente representava para os pobres e humildes.
Na novela do Aguinaldo Silva o falso “pastor” era desmascarado e corrido de Santana do Agreste. O pobre padre da cidade nada podia fazer contra ele, mas a heroína sim. Ofereceu ao pastor a única coisa que eles querem: dinheiro. Muito dinheiro. Porque o tamanho da fé dele era do tamanho dos maços de notas que cobiçava.
Há muito que não vejo televisão. Transformada numa enorme cloaca que teria que pagar para ver, decidi prescindir dela.

Recuso ter que pagar para ter um esgoto dentro de casa! Tenho apenas os canais de sinal aberto da TDT e uma parabólica apontada ao Astra e ao Hotbird. E mesmo assim vejo muito pouco.
Pouco mais aprecio do que documentários, e até o canal Odisseia deixou de ter qualidade. Sei que existem agora em streaming canais de documentários, mas não tenho interesse. O meu tempo serve para outras coisas.
Da mesma forma recuso ver séries da moda, sei da natureza humana o suficiente para não querer gastar tempo com NETFLIX e afins. Servem muito bem o propósito de entretenimento (pago à parte) e conseguem o fim a que se propõem de anestesiar hordas de pessoas assustadas e a necessitar de fugas! Não vou por aí.

Reduzido que estou aos canais de sinal aberto caí por acaso ao fazer zapping numa novela brasileira da SIC. A “obra de arte” chama-se "Dona do Pedaço", e aquilo que por lá se passa é o retrato caricaturado e grotesco da queda esplendorosa de um país.
Não nos enganemos: apesar da dimensão continental e das tensões existentes na nação brasileira por conta da sua diversidade étnico-cultural, Portugal conseguiu deixar na América do sul um Estado-nação. Ninguém discute hoje a existência da nação brasileira. Poucos países se podem dar ao luxo de se afirmarem orgulhosos de serem uma nação, mas o Brasil sim.
Há inequivocamente um povo brasileiro, não dois ou mais. O Brasil é o país do samba, do Carnaval, da bossa nova, de grandes vultos da literatura, de Clarice Lispector a Machado de Assis, de Tom Jobim, Vinícius de Morais, de Xico e Bethânia, e tantos, tantos outros que emprestam alma e identidade ao povo do gigante gentil sul-americano.
A dita novela "Dona do Pedaço" tem ainda algumas glórias do passado. O Ary Fontora está lá, tal como a Betty Faria, com as marcas do tempo que os anos não perdoam. Mas é um privilégio que permaneçam entre nós e seria até um prazer revê-los, não fosse o choque de os ver rebaixados a algo tão repugnante.
Na novela “A Dona do Pedaço” os clichés vão no pior sentido. Há um cozinheiro português, caricatura ridícula do “Seu Manuel" dos finais do século XIX, barrigudo e de bigode, padeiro (ou boleiro na versão do século XXI).
Trata-se de um personagem muito de agrado de uma certa camada do povão brasileiro, mais das elites que o fomentam. Só lhe falta dizer “ora pois”, frase que juro, nunca escutei da boca de nenhum português. Nem uma única vez.
A novela que a SIC agora exibe (neste momento deve estar a dar os episódios finais, mas não irei ver) reflecte muitas facetas do Brasil contemporâneo que eu preferiria que não chegassem a Portugal.

Ao nosso país chegam muitos brasileiros em busca de uma vida melhor. Sabem que Portugal não os fará ricos, mas sabem também que o país é sereno e tranquilo, com uma segurança que nem podem sonhar no seu país de origem . Conheço vários, gente séria e trabalhadora, espelho do povo brasileiro, de boa índole e trabalhador. São muito bem-vindos.
O que não é nada bem vindo para mim, que sou apenas uma voz entre 10 milhões de portugueses, é o retrato em forma de estrumeira que a novela da SIC transmite.
A queda esplendorosa do Brasil está lá retratada: na
naturalização do assassino a soldo, como se fosse a coisa mais natural do mundo matar por dinheiro.

Há o casal homoafectivo que nunca troca um beijo, porque os tempos são de moral asséptica e falsa, ao qual não é alheio o facto de ser uma novela da Globo. Da mesma forma que não será alheio a quem pertence aquela estação de TV brasileira e as influências da política e das igrejas neopentecostais que infectam um país e um povo desesperado por conforto espiritual.
Na “Dona do Pedaço” roubam-se fortunas à distância de um toque na "tela" do "celular", mata-se por tudo e por nada, o agente policial é violento com a esposa e corrupto, tanto quanto o bandido que é suposto apanhar.

Mas o mais assustador é que no final da novela os perdidos, a assassina, o viciado em jogo, encontram a redenção nos tais “pastores”. Todos os personagens investem na internet e nas redes sociais, mas o recado nada discreto ou sub-reptício está lá: a redenção nas "igrejas".
Afinal era mesmo o “Pastor Hilario” de há 30 anos, ou os dos seus sucedâneos quem ganhou. Aquela gente venceu, tomou conta do Brasil, um país nas mãos de “crentelhos evangegues” e de loucos vestidos de políticos.

E o que é que isso tem a ver com Portugal? Tem mais do que aqui o cidadão anónimo gosta:
O enredo de “A Dona do Pedaço, do pouco que vi, é mais do que pífio: é baixo, é nojento, é repugnante na mensagem que transmite: lamento pelos bons actores que se vêm na necessidade de baixar a papéis tão rascas.
Mas o pior não é isso: o pior é mesmo saber que a SIC tem capital da Globo e que por via disso este lixo made in Brasil nos é enfiado pelas TV adentro.
Tenho a esperança que pouca gente veja aquilo. Tenho mais esperança ainda que aquela escala de valores (a falta dela) mais aquela redenção em “igrejas” que alimentam “pastores” a dízimo não ecoe por terras lusas.
Que o fenómeno seja social e culturalmente bem-visto no país irmão (irmão? Não, o Brasil não é irmão de Portugal, é filho). Tudo bem. Mas “Igrejas” destas por cá dispenso. Eu e milhões de portugueses.
Na hipótese remota de algum responsável da SIC ler isto, fica a mensagem: tenham vergonha na cara e tratem de afrontar os tipos da Globo que nos impingem este lixo. Não sei o que é que 10 milhões de portugueses pensam disto. Mas eu sou português, penso assim e estou num país livre, próspero e seguro.
“A Dona do Pedaço” não é uma simples novela: é um insulto à sensibilidade e à inteligência, à civilidade e à civilização, à dignidade da pessoa humana. É estrume coberto com uma capa de verniz feito de “celurlares” de revolvers, de assassinos a soldo, de redes sociais, de filhos que roubam pais, de pastores que acenam com bíblias, enquanto as suas atitudes ofendem o espírito do livro que é sagrado para milhões de pessoas. Tem vergonha na cara SIC!
PS: sei que o fim da novela no Brasil já aconteceu e que causou polémica. Não sei se fizeram um final diferente para Portugal. Com um ou outro final, passaríamos bem sem isto!

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