domingo, 14 de março de 2021

As "Jinelas" da Hermínia

Quem visitar o museu do fado, em Lisboa, pode escutar um fado da grande Hermínia Silva, fadista castiça e muito portuguesa, onde ela canta as "jinelas,"da cidade, ao invés do termo "correcto" janelas!
Amália foi do mundo, mas a Hermínia foi só nossa.
Mulher simples, alfacinha, tinha tanto medo dos aviões que por causa disso nunca se internacionalizou.
O seu português também era o do povo, simples, sem o lustro da palavra escrita, mas com a alegria pura da palavra dita e cantada, nesse grito da alma que canta a solidão e a dor do universo, que é o fado.
E no dito fado o que lá está são mesmo as "jinelas".
Qualquer português conhece o chavão que diz que "só se fala bem português entre Coimbra e Lisboa", afirmação pejorativa que coloca na categoria de selvagens ou incivilizados todos os outros portugueses!
Mas de onde vem esta afirmação hoje bizarra?
Algumas coisas podem escapar ao comum cidadão: uma, é que as fronteiras entre Portugal e Espanha só foram definitivamente determinadas no século XIX! Até lá os marcos não existiam. Resta o pedaço indefinido de Olivença, desavença até hoje por resolver com os castelhanos.
O outro facto curioso é que o português que hoje falamos também só foi unificado no século XIX, por volta de 1860, e esse trabalho foi feito pelas academias de Coimbra e de Lisboa.
Foram os ilustres da nação quem finalmente determinou que a ortografia oficial - e uma ortografia é sempre um trabalho imperfeito e necessariamente inacabado de aproximar a língua falada da sua representação sob a forma de signos - era a que temos hoje, e que o termo certo é "janelas" e não "jinelas'.
Foi assim que o velho idioma português se consolidou por cá, e basta ler os clássicos portugueses da segunda metade do século XIX para perceber o quão rico era o português de então, e o quanto temos vindo a perder desde aí, por via da globalização e da imposição de estrangeirismos, sobretudo do inglês.
Camilo, Eça, ou já entrando no século XX, Aquilino, Soeiro... Deixaram um léxico riquíssimo que temos vindo a perder.
Urge-me reler muitos desses autores. Peguei há pouco no Romance da Raposa" do Aquilino, e encontrei uma ou outra palavra que tive que repescar ou relembrar qual o seu sentido.
Curiosamente o Brasil unificou o seu português mais ou menos na mesma altura.
Mas fez esse trabalho per se, sem obviamente consultar o velho colonizador, e tendo em conta o gigantismo da nação brasileira, e a influência dos idiomas nativos, como o tupi-guarani, ou a influência das línguas e culturas africanas, europeias, ou mesmo sírio-libaneses, japoneses, e todas as influências da multiplicidade étnica do Brasil.
Esse é o motivo pelo qual o português de Portugal difere de forma acentuada ente os dois lados do Atlântico, e também explica porque é que as novas nações africanas nascidas só no pós 25 de Abril de 74 mantém um português mais próximo do português europeu.
Entretanto a partir da segunda metade do século XX, com a explosão das telecomunicações, começando pela rádio, exponenciadas pela televisão, e agora pela internet voltaram a juntar as várias comunidades de falantes do português, sem perder de vista que o português possui um "esqueleto" comum a toda a lusofonia, mas que cada país coloca sobre ele "a carne", o "sangue", os "nervos" que lhe conferem as diferentes formas de falar, sentir, pensar, amar e talvez até odiar.
Mas o esqueleto está cá, é sólido o suficiente para que a família lusófona se entenda, que descubra a riqueza, a diversidade, o brilho daquela que o poeta apelidou de "última flor do Lácio".
Não gosto, nem quero uma unificação do português. Não é necessário e não trará enriquecimento! Pelo contrário, traz pobreza.
Importa mais ler os clássicos, de Portugal, do Brasil, de Angola, de Moçambique, da Guiné, de Cabo Verde, de cada canto onde o velho colonizador plantou um idioma, além de um império que foi esclavagista e colonialista!
Promover entendimentos, sim! Padronizar, homogeneizar, leofilizar a lusofonia, não!
Viva a riqueza, a diversidade, a diferença que nos define e nos une.

 

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