domingo, 21 de março de 2021

Incenso, Laranjas e Linguiça Assada

Sempre me questionei o porquê de o Reguengo Pequeno não ter capela, ao contrário de outras aldeias vizinhas. Em vez disso, a sua capela, dedicada a S. Domingos, fica retirada do centro da aldeia, num local ermo chamado justamente São Domingos. Um casal com a sua capela! Essa mesma que alberga o orgulhoso guião púrpura que encabeçava a procissão do corpo de Deus em São Bartolomeu. O púrpura imperial, destinado a Césares e Augustos, e de quem Cristo se haveria de tornar herdeiro por dois milénios. 
Bandeira enorme e imponente, símbolo de uma cristandade que herdou o império que trazia sangue nos olhos. Jesus propôs a revolução, em vez do sangue, o amor no coração. Mas a festa que ecoa na memória é hoje outra. Por alturas de Janeiro havia uma uma festa de que gostava particularmente: o Santo Antão, padroeiro dos animais domésticos. Quando a terra se despia de folhas e de frutos e o frio cortante se fazia sentir, era altura, lá por meados do mês, de haver missa na capela, seguida da benção dos animais. Recordo a pequena e acolhedora capela apinhada de fiéis, as estatuetas dos santos, e o cheiro doce do incensário a queimar a resina preciosa. 
Assim se santificava o local e se disfarça o cheiro dos animais que os aldeões levavam para a benção. Sacralização dos animais por intercessão de Santo Antão, espécie de intermediário com o Altíssimo, de quem os homens dependiam. E dependiam também dos burros, pela força de puxar o arado ou a carga de uvas em direcção ao lagar, das ovelhas e cabras de onde vinha o leite, a carne ou a lã. Havia solenidade e performance no ritual presidido pelo sacerdote, havia confraternização dos aldeãos das redondezas, havia hierarquia espelhada nos animais que se exibiam: ter uma junta de bois ou um cavalo conferiam estatuto que aos pobres analfabetos pareciam - e eram, riqueza.
Recordo dos carreiros que o pai conhecia e que faziam curtas as distâncias entre o nosso casal e São Domingos. Recordo sobretudo a refeição comunal no largo da capela - era tão grande, hoje pareceu-me minúsculo! - e a partilha da comida, onde se trocavam laranjas, chouriços assados e vinho , toucinho ou couratos, que matavam a fome, à volta de fogueiras que espantavam o frio, depois do padre ter benzido e expulsado a doença e o mal dos preciosos animais. Recordo a separação vincada entre o sagrado e o profano, já que os bailaricos da noite onde os rapazes procuravam jovens casadoiras aconteciam mais longe, no centro do Reguengo Pequeno. Uma separação física bem demarcada pela distância com São Domingos, e que não acontecia nas aldeias vizinhas. Hoje tentei trilhar esses velhos caminhos, e descobri que eles já não existem. Morreram com os velhos que deixaram de os trilhar. Hoje abundam eucaliptos, e grandes campos com as culturas da moda: repolho ou abóboras. Sabes pai, hoje já não conseguiríamos ir a São Domingos pelos teus carreiros. Eles morreram contigo. Para mim ficou a memória.

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