domingo, 14 de março de 2021

O Voo do Arado


Quem visitar em Lisboa o magnífico museu nacional de etnologia (sou suspeito, afinal é o meu museu), encontra aquela que é a maior colecção de arados de Portugal.
Perante nós desfila um conjunto de arados, recolhidos de norte a sul. Um objecto que por 5000 anos nos serviu muito bem e que marcou um tempo longo, em que pouco ou nada evoluiu.
Um engenho de madeira, eventualmente com acrescento do ferro, e que, puxado por pessoas ou animais, servia para sulcar a terra e maximizar as sementeiras, reduzindo o tempo e a energia dispendidas.
Cinco mil anos, um tempo onde a urgência de mudança não existia. Um tempo em que geração após geração pouco havia que aprender de novo, num mundo predominantemente rural, onde a organização social obedecia a padrões estáveis, onde a produção e a reprodução obedeciam a regras aparentemente imutáveis.
Durante este período que vara a humanidade desde o neolítico até ao século XX, o arado voou sobre a terra, marcado o ritmo da vida e das estações do ano, da sementeira até à colheita.
O século XX trouxe a modernidade: em menos de 100 anos o velho arado, que tão bem nos serviu, desapareceu, apropriado por máquinas modernas. O mundo rural que conheceu milhões de gerações desapareceu num piscar de olhos!
Hoje vivemos um mundo urbano, com velocidade estonteante e aceleração constante.
Tivemos todos que aprender a ler e escrever.
Os computadores, a internet e o mundo virtual substituíram esse tempo longo e estável, por uma modernidade líquida, onde somos obrigados a evoluir e adaptarmo-nos num ritmo constante e esgotante.
A morte do arado marcou também a morte desse tempo longo, onde a necessidade de aprendizagem era pequena e constante, e no lugar dela nasceu a contemporaneidade onde somos obrigados a aprender a falar uns com os outros intermediados por máquinas, por inteligência artificial, num mundo onde o silício parece querer tirar o lugar ao carbono.
A contemporaneidade não é apenas líquida: é frágil, alucinada, esgotante, correndo para um lugar que não sabemos qual será. Somos uma espécie em evolução rápida e acelerada, impreparada para a pressão em que existimos.
Um tempo de compressão da história, às vezes demasiado desconfortável, a convidar ao olhar de um tempo passado em que a vida e a memória agora se aparentam mais doces e apetecíveis. Mas essa é apenas uma ratoeira criada por um presente furioso e alucinado.
O passado não é refúgio porque ele já não existe. O olhar só pode ser direccionado num sentido: o futuro. Porque, como alguém escreveu nas paredes de uma faculdade em Lisboa, "o futuro é para sempre".
O arado voou. O tempo longo e lento que ele marcou já não existe.
Mas o futuro abre-se a cada instante, e a nós compete escolher os novos voos que queremos.

 

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