sexta-feira, 2 de abril de 2021

Levantou Poeira



 Ah, veio a chuva! A poeira vinda do deserto finalmente foi lavada.

Se os carros ficaram sujos de lama vinda do céu com as primeiras águas, a chuva foi todavia suficiente para lavar também essa poeira que deu ao céu um tom de sangue velho e de chumbo, uma atmosfera pesada, com cheiro agoirento, pondo olhos e pulmões a arder.
Dizem que o deserto logo abaixo de Gibraltar é belo: que não há céu estrelado mais intenso, que o nascer e o pôr-do-sol visto da vastidão do Saara são majestosos, que não importa saber que depois de uma duna só existe outra duna, porque o deserto serpenteia, é hipnótico, sedutor, cativante. Talvez, não sei.
Para mim, nascido e criado junto do Atlântico e bafejado pela sorte de uma atmosfera quase sempre límpida e pura, de um azul intenso cúmplice entre o céu e o mar, com o cheiro da maresia, nunca questionei se os ares de outras paragens seriam igualmente doces.
Não são: quando pela primeira vez me afastei do mar percebi que, a despeito de grandiosas e belas cidades, ou até de planícies imensas, ou mesmo montanhas imponentes, a atmosfera é aí, longe do mar, diferente. Mesmo sem o peso da poeira de um qualquer deserto, nada se compara à doçura fresca da brisa do Atlântico, vinda quase sempre de noroeste. Nem sequer a opulência e grandiosidade de qualquer cidade consegue esconder o seu ar pesado, quais damas de outras eras, empoadas e ricamente vestidas, mas a disfarçar odores com água-de-rosas! Prefiro ar agreste mas puro, a cheirar a sal e iodo.
Por este motivo decidi há muito que seria incapaz de viver longe do mar, e talvez pelo mesmo motivo, nunca senti grande vontade de conhecer a vastidão do Saara, afinal aqui tão perto.
Além do mais hoje é cemitério de gente que foge do sul, para acabar morto na travessia do mar do meio, ou escravo num qualquer mercado líbio. Nem só de víboras enterradas na areia se veste a morte no deserto.
Aliás, as víboras são o menor dos perigos desse oceano de areia.
Um dia irei conhecer, tirar a prova dos nove, ou até a prova real pela inversa. Dizem que ali, o melhor de tudo até podem ser as pessoas, os seus hábitos e culturas, mas isso já se sabe, depende de que zona do deserto estamos a falar, porque ele é tão vasto e imenso quanto as populações que por lá vivem.
Desta feita o gigante dourado juntou-se ao vento suão e veio até nós: atirou sobre Portugal uma nuvem de poeira, abrasiva, quente e agreste, com uma espécie de calor de Verão temporão, fora de época, que me fez lembrar o quanto gosto da brisa atlântica!
A noite trouxe finalmente o alívio, feita de chuva e ruídos, e de um sono agitado. Pareceu-me escutar as vozes que apenas costumo escutar quando procuro refúgio no canto onde tenho as raízes. Nesta noite estiveram aqui comigo - dizia eu gostar de casas novas porque não têm fantasmas ! Ao contrário, eles afinal são livres, sem o peso da matéria, e vagueiam por onde lhes aprovem.
A diferença é que, se no meu canto ancestral as suas vozes são pausadas, claras e serenas, aqui na casa nova não passaram de sussurros imperceptíveis. Quiseram dizer-me algo, mas fui incompetente. Desta vez não lhes entendi as vozes.
A chuva passou, a atmosfera voltou a ser límpida, fresca, cristalina e azul, as nuvens voltaram aos alegres pompons que correm sob um azul que é só nosso.
Instala-se uma serenidade quase impossível, feita de passado e presente, de solidão e saudade incuráveis, que vêm de dentro e se instalam sem pedir licença.
Passou um ano e meio de sobressalto, de vida parada, com uma peste ignóbil à solta, que já me (nos) roubou alguns (espero que não me roube mais ninguém), manteve as vidas em suspenso, obrigou a ponderar escolhas, e trouxe sobretudo uma clareza de espírito, uma consciência da finitude, da extrema fragilidade do ser, da ilusão perpétua que ajuda a carregar o fardo.
A vida hoje parece um mar da palha sereno, aqui na frente, a reflectir o céu e a cidade, suspensa na outra margem. Como um atleta que pára para retomar balanço, músculos tensos preparados para a próxima corrida.
A temível roda da vida, na sua fúria do nascer e morrer, vai voltar a girar.
Será que iremos retomar a normalidade em breve, depois deste sobressalto? Ainda há futuro? E que futuro será esse, quando perdemos milhares de vidas num só ano? Teremos aprendido alguma coisa, ou voltaremos a correr para os braços doces da fantasia?

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