sexta-feira, 2 de abril de 2021

Um Estranho numa Terra Estranha

 

15 de Setembro de 2018 
Conteúdo partilhado com: Público
Hoje resolvi fazer um passeio matinal pelas redondezas do Casal Caldeira, terra que me viu nascer e onde vivi até que as contingências da vida me levaram para Lisboa. Trilhei estradas que já não trilhava há 43 anos, quando criança apascentava um rebanho de ovelhas levando-o às terras de pousio ou onde a seara já tivesse sido colhida e onde os animais pudessem comer os restos e as ervas, mato ou folhagem.
De batatas deixadas na terra, às parras das videiras já vindimadas, até às ervas daninhas, o rebanho medrava com as sobras que ninguém queria, definindo a posição social do pastor, pouco acima dos indigentes, ou como se designa nos EUA, de um obo. A estradas ainda são as mesmas, a paisagem rural é outra. Onde o mar de eucaliptos não chegou sobra um pomar de maçãs reinetas e inúmeros abobrais. Furos de água incontáveis para ir buscar recursos hídricos onde as raízes dos eucaliptos não chegam.
Num pomar vejo um homem num trator a alguns metros: boné "bico de pato" e de rosto cabisbaixo, não o reconheço, e recordando uma velha máxima desta terra, "quem vai vai, quem está está". Num dos caminhos sobe um carro, mas a distância não deixa ver que é, nem isso me importava. Resolvi pegar no telemóvel e registar em fotos uma paisagem que já me foi familiar. Caminho mais umas centenas de metros, até que resolvo voltar para trás. Escuto vozes vindas do carro que tinha subido minutos antes. Nada mais do que um rosto conhecido, uma "madrinha de empréstimo", já que me habituei a tratá-la desta forma porque as minhas irmãs, todas mais velhas do que eu o faziam, apesar de que só a minha irmã mais velha ser de facto afilhada. Mas nesta terra, tal como em outras, o apadrinhamento revestia-se de hierarquia social vestida de solidariedade e de esperança. Quem tinha terras e por isso bens podia compartilhar e apadrinhar, fornecendo trabalho assalariado a quem nada tinha de seu. Foi com o prazer de sempre que cumprimentei a "madrinha" e o Xico, homem de uma aldeia próxima e um pouco mais velho do que eu e que já não via há uns 20 anos.
Da conversa animada ficou-me a sensação de me ter tornado um estranho numa terra estranha, parafraseando o título de um livro de ficção científica com o mesmo nome do Robert Heilein, que eu li em criança naquele local enquanto apascentava as ovelhas. O homem do tractor era apenas um primo afastado que não me reconheceu e que ficou furioso por me ver a fotografar a paisagem - onde ele não estava.

Fiquei incrédulo! Mas já não se pode passear nos campos sem causar estranheza ou medo?! As pessoas agora em vez de falar e cumprimentar, mesmo pressupostos estranhos, fingem que não vêem? Não era assim há 50 anos. A explicação veio de novo pela madrinha na conversa alegre, como sempre foi: o primo "Esquim" já foi assaltado, e essa é uma situação recorrente na zona. O pessoal anda assustado. Isto é surpreendente para mim, a região da Lourinhã está longe do envelhecimento e desertificação que outras regiões do país sofrem. Chegámos à contemporaneidade: um moderníssimo telemóvel, alfaias agrícolas igualmente modernas, mas as relações humanas permanecem num registo de medo e desconfiança, aliás justificado. Vai longe o tempo da porta deixada apenas no trinco ou da chave debaixo do tapete.

Hoje no Casal Caldeira quem cá mora ou passa temporadas vive no medo: dos fogos, já que os eucaliptos estão colados às casas, e dos estranhos, cuja intenção desconhecemos. E de repente sinto-me um estranho numa terra estranha. Como o personagem do livro que li em menino. Só que não estou em Marte. Estou mesmo na terra que me viu nascer. É verdade, a mesma água não corre duas vezes por baixo da mesma ponte. O Casal Caldeira continua a ser Casal Caldeira: mas não aquele que eu habitei.

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