sábado, 13 de abril de 2019

Sete Espíritos Malignos



Posso indicar o mês: seria certamente Julho, porque me lembro das ameixoeiras que davam ameixas amarelas. Eram três, e nesta altura do ano vergavam sob o peso dos frutos, grandes, sumarentos e muito doces. Caminhava eu criança, talvez com os meus 6 anos, juntamente com os pais e com as irmãs em direcção à vinha. Pedaço de terra que distava mais ou menos a um quilómetro da nossa casa, arrendado ao pai, e de onde se colhiam as uvas por alturas de Setembro.
Íamos sulfatar as cepas, precavendo assim o míldio letal que costumava atacar a vinha quando o nevoeiro avançava por terra, vindo de Peniche, numa altura de calor. Humidade e calor eram calamidade certa que o pai evitava com enxofre e sulfato de cobre. Mas as ameixoeiras ficavam ao pé da nossa casa, no quintal adjacente à casa enorme e em ruínas que o tio João havia construído antes, por volta de 1930 com o dinheiro que ganhou na América.
Nunca se gozou da casa, por conta da eterna visita nunca convidada do anjo negro. A casa ficou vazia, e a propriedade foi comprada por um homem rico da vila que raramente a visitava. Coube ao pai velar pela ruína e respectivo quintal, onde havia as ditas ameixoeiras, mais uma figueira que faziam as delicias das crianças quando os frutos maduros pendiam dos galhos. Assim é a lei imutável desde que o mundo é mundo: o tio João, que morreu muitos anos antes de eu vir ao mundo, plantou as árvores de fruto. Mas o tempo das árvores não se mede pelo tempo dos homens, podendo nós por aí medir a grandeza da alma de um homem, quando ele planta uma árvore sem nunca saber se virá a colher os seus frutos.
O tio João plantou aquelas árvores, e era eu e as manas que os comíamos! Não só nós: a caminho da vinha cruzávamo-nos com a família do “Terramoto”, e lá vinha o “Russo”, menino da mesma idade que eu, a correr e a pedir: “quela pão, quela pão, quela ameixa, quela a meixa” - quero pão, quero pão, quero ameixas, quero ameixas. O Russo era um menino normal, que vivia no casal a seguir ao nosso (no Oeste existem casais, e não montes) e com quem eu brincava muitas vezes.
Vivia ele com os pais e os irmãos, mas foi no irmão Zé que me detive pela estranheza: semi-nu, preso com uma corda à cintura, sentado no chão poeirento, sujo e ausente. O Zé nunca falava connosco nem queria brincar, e eu na minha ignorância de criança achava que seria por ser muito mais velho. Na verdade o Zé levava de avanço apenas mais uns três anos de idade do que eu. Lembro-me que o Zé tinha uns olhos lindos, azuis. Devo ter visto aqueles olhos uma única vez. Quando os adultos passavam e lhe davam os bons dias o Zé permanecia mudo e quedo, mas naquele dia, e por uma única vez, ergueu os olhos à nossa passagem, num esgar que me pareceu uma tentativa de um sorriso. O que aqueles olhos quereriam dizer foi dúvida que ficou a pairar no meu espírito até hoje. Haveria a minha mãe de me explicar mais tarde que o Zé era assim mesmo, “atrasadinho” e que nunca falava nem respondia às pessoas. Ele não era “normal”.
Noutra conversa que escutei, entre a mãe do “Russo” e do Zé e a minha mãe, (porque as crianças não entendem destas coisas e por isso duas mulheres podem partilhar estas conversas à vontade na sua presença), o esclarecimento da primeira: que o Zé estava preso por uma corda à cintura “para não fugir”. Dizia a mãe dele que tinha medo, que havia nascido uma rapariga, e que tinha medo que o filho um dia viesse a “avançar” para a irmã. Maior ainda seria o medo quando ela já fosse mulherzinha! Nessa longa conversa contou que estranhou o comportamento do filho logo à nascença, e para mostrar que era mulher de entendimento e que não se deixava ficar de braço cruzados, havia ido a uma consulta com a bruxa de São Bartolomeu, mulher afamada a quem os pobres aldeões recorriam nas horas das aflições. Foi a bruxa que lhe havia informado que o filho estava possuído por não um, mas por sete espíritos malignos! Era tal a força do mal que nem os seus poderes poderiam fazer algo pelo menino. Desta forma lá continuou o Zézito preso por uma corda, nu, roto, maltrapilho, ás vezes ao frio e à chuva, outras na torreira do Sol, enquanto os pais labutavam na terra pela parca alimentação. E enquanto o tempo avançava, crescia mo medo do Zé “avançar” para a irmã. Havia que resolver a situação, e a solução veio com a ajuda do “estado”. O José foi internado num asilo! Descobri há pouco o fim trágico do menino sempre ausente: o José pôs termo à sua existência no tal asilo. Os “sete espíritos malignos” deixaram de ter um corpo para habitar. Na verdade o Zé era autista profundo. Aconteceu que a pobreza e a ignorância extremas dos anos 70 aliada à incapacidade dos médicos e da sociedade para ajudar atiraram o Zé para um lar. O menino que havia de se tornar adolescente e chegar a jovem adulto ficara cansado da prisão da sua mente e decidira partir. Finalmente liberto da corda, do calor e do frio, do medo e da prisão da sua mente, da ausência dos pais e dos irmãos. Que crime terás cometido tu noutra vida Zé - porque nessa vida não foi seguramente - para mereceres tal castigo? Ou foi o tal Deus omnipotente e omnipresente que na sua infinita frieza e crueldade assim o determinou?! Fosse eu um pintor e eternizaria o teu olhar num quadro. Aquele olhar que por uma vez me lançaste quando eu era um menino de 6 anos e que hoje me parece um grito desesperado clamando por uma ajuda que nunca chegou.

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