sábado, 13 de abril de 2019

Dona Alice

Foi um tempo de mudança. Apesar da protecção relativa do lugar onde habitava e de viver nessa altura a minha infância, tudo foi intenso e vivido. A guerra de África era um medo real, muitos jovens de então participaram nela, defendendo um império em ruína e uma população de colonos, muitos deles abastados, contra a exploração dos nativos e espoliação das suas terras e dos seus recursos.
Nem todos regressaram vivos. Foram matar pretos por ordem de um regime que não tolerava questionamentos. Os que regressavam vivos vinham com traumas de guerra que os acompanham pela vida fora. Rios de sangue e negros enterrados vivos são imagens impossíveis de apagar, mesmo que a vida decorresse agora tranquila e vagarosa na bocolidade da aldeia.
Tudo isso chegava até mim como uma estória fantástica. Às vezes escutava a mãe dizer que preferia morrer a ver o seu único filho ir para a guerra. A guerra acabou antes de me tornar homem e a mãe morreu jovem sem ter visto o filho ir para África.
A minha guerra era outra: corria o ano de 1974 e eu tinha 6 anos. Em Abril acontece a revolução, em Setembro eu entro para a escola primária.
A escola não era na altura apresentada como algo bom: pelo contrário, era algo difícil e a professora costumava castigar os meninos. De tabefes a puxões de orelhas até às temidas reguadas, o rol de horrores era-nos apresentado muito antes. Se o objectivo era incutir terror, não havia dúvida que era plenamente conseguido. O único alívio era saber que tinha chegado uma nova professora primária, a d. Manuela. Pelo menos até á terceira classe estaria relativamente protegido da violência da d. Alice.
A fama vinha de longe: d. Alice era a professora da aldeia e havia duas coisas que todos sabiam: uma boa, outra nem por isso. A boa era que os alunos dela aprendiam mesmo, e que quando no final da quarta classe eram levados á Vila para o exame nacional, todos passavam, muitos deles com distinção. A ida á Vila fazer o exame era ela mesma uma experiência terrível para as crianças. Um local diferente, estranho e assustador, aliado ao medo de chumbar no exame. - Se passares de ano filha, prometeram os meus pais á minha irmã Maria, anos antes, terás um bife para o almoço. Passar passou, e o precioso bife de vaca foi comprado, mas a distracção dos pais deixou que o Leão, cão preto do ti Manel o roubasse, a que este se abifasse ao bife que filou. A Maria passou o exame da quarta classe com distinção, mas o almoço foram ovos de rola que o pai tirou do ninho ao pé da vinha. Foi um almoço regado com lágrimas pelo desejo de um bife que o Leão roubou e comeu.

O lado mau era, é claro, a rispidez da professora, sempre disponível para o tabefe e para a reguada.
Por dois anos não passei por tal terror. A d. Manuela era uma jovem doce que raramente nos castigava, e quando o fazia era por temer a colega mais velha que lhe impunha medo, quase tanto quanto o medo que nos incutia a nós.
O 25 de Abril aconteceu, a guerra acabou, voltaram os militares e mais tarde os retornados, e meses depois entrava eu na escola.
D. Alice era uma mulher mais velha: mulher solteira e amargurada, fria e ríspida, autoritária e rigorosa no ensino. Simpatizante do Estado Novo e da velha ordem, ainda que esse mesmo regime lhe tenha roubado regalias e liberdades.
Ser mulher e professora nos tempos sombrios do salazarismo traziam obrigações e limites que d. Alice aceitou e tomou para si. Uma coisa era certa: com ela todos os meninos e meninas aprendiam a ler e a escrever e também a fazer as contas, em especial as temidas contas de multiplicar e as de dividir, a prova dos nove e o terror da prova real pela inversa!
A casa que o estado arranjou para a d. Alice era logo ao lado da escola, uns 100 metros se tanto. Ficava ao lado da estrada e nós tínhamos forçosamente de passar frente à casa para chegar à escola. Antes da professora chegar perfilávamos todos em duas filas, meninos de um lado, meninas do outro. Era uma casa imponente, quando comparada com as casas humildes dos pobres aldeões analfabetos: um primeiro andar, umas escadas externas que levavam ao primeiro andar, vários quartos e dependências, telhado de três águas e um conforto que só os mais abastados da aldeia podiam igualar.
Entrar na escola em ano de revolução trouxe naturais mudanças. Lembro-me da aflição e do medo da d. Alice que nos queria ensinar tendo apenas por material didáctico os velhos livros e canetas vindos do tempo do antigo regime. Mas o regime democrático ainda não tinha tido tempo para reformular currículos e livros, ninguém sabia se Portugal iria virar um satélite da comunista URSS, e a d. Alice mais a d. Manuela lá nos foram ensinando com recurso aos velhos livros salazarentos. "I" de igreja. "O Holofote ilumina o estádio". "O Hábito do monge"... Lembro com fascino as imagens coloridas e as letras que, como por magia, se iam juntando para formar palavras, ideias, contando estórias. Lembro as mesas de estudo em madeira, com tampo inclinado, assento embutido, ranhura para lápis e canetas não rolarem e tinteiro para molhar a caneta de aparo.
A segunda classe mudou tudo: os livros mudaram, perderam a cor e ganharam conteúdos novos. " Uma gaivota voava, voava, asas de vento, coração de mar. Como ela somos livres, somos livres de voar....".
Tempos depois mudaram também as mesas das escola. Os confortáveis tampos inclinados, vindos desde a Idade Média, foram repentinamente substituídas pelas estúpidas mesas de tampo plano, desconfortáveis e nada anatómicas. Como compensação a revolução lá trouxe a energia eléctrica, para nosso conforto e alegria: em vez de apenas a luz natural das grandes janelas, havia agora lâmpadas fluorescentes e supremo conforto, um aquecedor eléctrico que matava o frio gélido de Janeiro.
E a temida terceira classe chegou, e com ela a mudança para as mãos da d. Alice. Não que o regime de medo fosse o mesmo. Não: uns anos antes ela tinha dado uma tareia numa menina que morava na casa frente à sua. Quando a mãe da menina mostrou o corpo dela à minha mãe, cheio de nódoas negras, a minha mãe prometeu que aquilo não ficava assim. Falou com o professor Lamy, homem de Lisboa e ligado ao PS, e semanas depois d. Alice recebia uma inspecção e uma admoestação. Dali em diante os castigos corporais ficaram uma sombra do que foram. Acabaram também as aulas de reforço na casa da d. Alice. Justiça seja feita, quando ela percebia que os alunos tinham dificuldades de aprendizagem levava-os para a sua casa e lá continuavam as lições. Para amenizar o medo das crianças existia a mãe da professora, uma senhora meiga e afável que por gestos lá ia ajudando os meninos. Ali em casa cada criança levava uma cadeirinha ou banco para se sentar e rever a matéria, enquanto não raras vezes a criada da casa preparava chá e torradas para as senhoras, cujo perfume acicatava a fome de algumas crianças que por via do dia longo e dos afazeres se fazia sentir. Mas ali o chá e as torradas eram curtos e não podiam ser partilhados. No Natal sim: d. Alice comprava um grande saco de línguas de gato que dividia rigorosamente pelas crianças, que dessa forma tinham acesso a uma guloseima tão rara. Era a época de fazer o enorme presépio. Íamos ao campo apanhar musgos e líquenes, e com ele a d. Alice fazia o maior e mais bonito presépio das aldeias em redor. Figurinhas de barro pintado recriavam um tempo remoto numa mescla de eras que em nada reproduziram a verdadeira época em que no menino Jesus nasceu. Não importava: nem nós sabíamos o que eram dois mil anos ou o que seria Israel nesse tempo. O que importava mesmo era a folga e a alegria do Natal. Houve um ano, creio que logo na primeira classe, em que a d. Alice inovou: fez um presépio vivo. A Cristina era a nossa Senhora, o Gregório o são José, e adivinhem.... eu como menino Jesus. Lembro o horror e a vergonha de ser obrigado a estar deitado nas palhas dentro de uns ridículos colants. Imaginem: só meninas usavam tal peça de roupa, e de repente ali estava eu naquela figura! Mas os sonhos de abóbora que uma mãe levou e que comemos no fim da peça...ah, esses eu nunca esqueci! Eram quase tão bons quanto as filhoses que a mãe fazia na véspera do Natal.
Desta forma a entrada na terceira classe foi muito mais amena para nós. Ainda assim não me livrei de algumas reguadas. Mas poucas. Nunca fui criança rebelde ou mal educado. Apanhei por me ter esquecido de fazer os trabalhos de casa para as férias. Distraído, só peguei neles na véspera já à luz do candeeiro a petróleo. Não só não consegui fazer todos os trabalhos, como ainda por cima sujei a sebenta com uma nódoa de azeite. No dia do regresso às aulas já sabia que iria apanhar. E apanhei mesmo!
Todos nós sabíamos os sinais de cor: os cadernos eram levados no fim do dia para revisão: se no dia seguinte enfileirados para entrar na sala a d. Alice viesse com ar zangado e rosto vermelho era certo que no mínimo vinha tabefe a seguir. As borrachas de apagar a sebenta estavam sujas? Tabefe. Éramos apanhados a esfregar as ditas borrachas nas calças para retirar o negro dos lápis? Tabefe. Se caía um pingo de tinta das temíveis canetas de aparo ou dos tinteiros que sujavam os cadernos ou a prova? Tabefe ou reguada. Se estávamos a desenhar uma letra e não levantava-mos a caneta para desenhar a perninha do A ou do D, tabefe! Era assim mesmo. Um dia a Lídia foi chamada ao quadro para resolver um problema de aritmética. O medo era tanto que se mijou toda.
Um dia quis bater com a régua na minha irmã Fátima. Só que ela teve coragem: escondeu as mãos e afrontou a professora com olhar desafiador, fazendo-a recuar.
Um menino era esquerdino? Coisa sinistra, era obrigado a escrever com a mão direita. A minha outra irmã Marília era ligeiramente disléxica: durante anos dizia "estogamo" em vez de estômago. Não apanhou por isso, mas teve que se esforçar.
Se o frio apertava no Inverno - e como aperta no clima do húmido do Oeste - e a criança levava roupa interior vestida para se proteger era mandada de volta a casa para se trocar com o epíteto de porca. Eram 4 quilómetros a pé para cada lado, a pé e por caminhos de terra batida.
E hoje? Hoje a casa está em ruínas. Nunca entendi porque é que aquela bela casa ficou desabitada depois da aposentação da professora. Havia ao lado um forno de cal abandonado. A terra é rica em calcário e o velho forno de cal lá permanecia, usado como lixeira. Era uma bonita casa que contrastava com a dureza de quem a habitava.
Hoje vivemos outros tempos. Hoje ninguém pode bater numa criança. Felizmente. Hoje o sistema só peca por se ter esquecido que as crianças são frágeis e por isso devem ser protegidas, mas que os adultos são quase tão frágeis quanto crianças, e que a eles ninguém os protege. Hoje os papéis não se equilibraram: inverteram-se, e temos agora muitas crianças feitas tiranetes. Elas sabem que ninguém as pode castigar e, como crianças que são, tornam-se carrascos de professores e de auxiliares. O círculo rodou 180°!
Todos os tempos têm as suas dificuldades. A contemporaneidade também. Mas nada se pode comparar aos tempos sombrios da "outra senhora".
Nada no tempo do Salazarismo que ainda vivi merece ser admirado. Foi um tempo de miséria medo e repressão que até na escola se sentia. Salvou-me o carinho e o calor da família, e as saúde e força que a juventude não permitiram derrubar.

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