sábado, 13 de abril de 2019

A Voz do Dono


De todas as estátuas dos santos da igreja de São Bartolomeu dos Galegos, paróquia a que pertencia, a que mais me impressionava era mesmo a do santo com o mesmo nome: num nicho da parede que separa o altar do corpo da igreja, de ar severo, faca numa mão, e na outra uma corrente com que prendia e segurava o diabo que tinha a seus pés. A figura grotesca do diabo e o ar severo do santo, aliados à estória que acerca dele o pai contava conjuravam-se para criar um medo real no meu imaginário de criança. O ar reprovador dos santos, juntamente com o medo incutido pelo sermão do padre na missa de Domingo faziam com que à noite tivesse pesadelos: os santos, feitos de barro, ganhavam vida - afinal não foi assim que deus criou Adão e Eva?- vinham-me buscar para me entregarem ao fogo eterno do inferno, onde os meus pecados de criança certamente me condenavam. Doçura ali, só mesmo no rosto da Nossa Senhora, a nossa mãe divina, que nos promete colo eterno. Tudo mais naquela igreja é masculino, severo, sofrido e austero. Mas era a tal estória, contada à noite que me deixava a pensar: havia na aldeia um homem que tinha um cordão de oiro e que o perdeu. A aflição de ter perdido tal tesouro levou o nosso personagem a cometer uma imprudência: foi à igreja da aldeia, e prometeu, não a deus ou ou ao santo, mas ao diabo que está aos seus pés, que pagaria vinte escudos se o cordão aparecesse. Coincidência ou intervenção maléfica, o facto é que o cordão de oiro apareceu, e o homem cumpriu a promessa: os vinte escudos foram dados ao diabo. Acontece que na igreja existiam caixas de esmolas para os santos, mas nenhuma para o diabo: afinal, quem cometeria a heresia de fazer promessas ao diabo?! Bom, o homem fez a promessa, o diabo cumpriu a sua parte, e dinheiro tinha que lhe ser dado. Não havendo tal caixa de esmolas, o homem optou por pôr os vinte escudos... na boca do diabo! E lá ficaram por longo tempo. ninguém tinha coragem sequer de lhe tocar; e fazer o quê, com dinheiro oferecido ao anjo caído, à incarnação do mal?! A nota permanecia na boca do diabo, incomodando os paroquianos, o padre e até o sacristão. Foi este que cometeu uma imprudência que lhe custou a vida. Contava o pai que o sacristão um dia perguntou ao padre da paróquia o que fazer com aquele dinheiro. A sugestão do padre foi: “pega nessa nota e queima-a”. O sacristão assim fez, e com esse gesto se condenou. Desde esse dia, quando à noite se deitava, escutava uma voz grave que lhe exigia: “quero o meu dinheiro”. Bem que o sacristão tentou esquecer o gesto: à noite lá vinha o diabo exigir-lhe os seus vinte escudos. Não posso, acabou por confessar o homem: queimei-os. “Então, ao menos devolve-me as cinzas”. Mas as cinzas levou-as o vento!” explicava o pobre homem, incapaz de satisfazer a voz do dono. Nem o diabo teve o seu dinheiro devolvido, nem o sacristão voltou a ter paz. Acabou por cometer suicídio, atirando-se para dentro de um poço. Assim era o Portugal dos anos 70 no Oeste de Portugal, a 70 quilómetros de Lisboa! Analfabeto, atrasado, amedrontado, em larga medida preso nas mãos da Igreja, com resquícios medievais ainda bem marcados. Sem estradas, sequer de gravilha, mas apenas carreiros, poeirentos no Verão, atoleiros de lama no Inverno. Mas nem tudo era mau: A ausência das comodidades modernas deram espaço à imaginação e espicaçaram a curiosidade de uma criança que escutava as estórias antigas à luz da lareira onde se cozinhava a ceia do dia, ou à luz bruxeleante de um candeeiro a petróleo. Não havendo televisão para servir estórias pré-feitas e prontas a consumir, eram mesmo as palavras, primeiro escutadas do pai, depois lidas nos livros que davam uma amplitude e liberdade sem limites à imaginação. Eram um tempo em que o desejo de controlo social pela Igreja era tal que alguns dos seus membros não hesitavam em pôr o diabo em pé de igualdade com deus. Desde que o rebanho se mantivesse submisso não interessava dizer que nada se iguala a deus, pelo menos para aqueles que são bafejados pela sorte do mistério da fé.

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