sábado, 13 de abril de 2019

Sina

"Tão Zé, sempre sozinho? Porque nunca arranjaste uma mulher? Olha que uma companhia só te faz falta. Ainda podes encontrá-la!"

A pergunta bateu seca, dura como um murro directo no estômago. Já devia saber de cor e salteado a resposta estudada, mas essa aqui era inútil. Desde menino que sabia a outra resposta, mas há verdades que nunca podem ser ditas. Ali, como sempre. Do alto dos seus 70 anos, o mesmo olhar fechado, o rosto de pedra, cabisbaixo, a velha dor de sempre, calada, renegada, inquieta, e o peso de um segredo que escondia no coração cansado. Não, ao primo Manel não adiantava mentir, mas também não podia falar-lhe a verdade. Aquela que ambos conheciam desde meninos, quando a vida se revelava no esplendor da infância e adolescência. Era o tempo em que tudo parecia possível e puro, vidas diante dos olhos acabados de abrir, inteiras, cheias de promessas e de possibilidades. Anos e anos infindáveis com a felicidade ali na frente. Era como a linha do horizonte que ambos viam no mar enquanto corriam descalços pelos caminhos da aldeia, às vezes empoeirados, outra vezes enlameados. Aquele mar hipnótico, que em fins de tardes ficavam ambos a fitar, o sol gigante, alaranjado, afogando-se lentamente numa vastidão de águas luminosas. Bastaria andar um pouco, até à praia, depois umas remadas, algum esforço e essa linha seria atingida. Mas esses passos nunca foram dados e nenhum barco surgiu que pudessem remar até essa linha. Os 10 quilómetros até ao mar cedo se revelaram-se um muro intransponível, assim como as obrigações que a vida impunha a homens que nunca puderam ser meninos. A linha continuava lá mas os caminhos de terra batida, os pés descalços e a obrigação de arrancar o sustento à terra cedo prenderam passos e sonhos.

Zé tinha uma sina: toda a gente sabe que quando nascem sete mulheres seguidas numa família, coisa nada impossível naquela época, uma delas seria bruxa. Fado ruim, mulheres que tinham pacto com o diabo e que à noite benziam os seus homens com o cu, garantindo assim que eles não acordariam até que regressassem das suas andanças por caminhos e encruzilhas esconsas, acompanhadas por outras bruxas e sob domínio do diabo, em orgias de sexo. Havia formas de quebrar o encanto. Uma delas, bem simples, era uma das sete irmãs ser madrinha de outra. A santa madre igreja assim o consentia, para bem do mundo que desta forma se livrava de bruxas, por definição más e com pacto com o demo.

Outra forma de quebrar o feitiço era um homem passar por acaso à noite onde as bruxas dançavam nesses cruzamentos, vagando como luzes de pirilampos. Se um homem passasse ali com uma junta de bois ou um burro e picasse uma delas com o aguilhão das bestas, imediatamente a bruxa cairia a seus pés, nua como veio ao mundo, já que era dessa forma que o anjo caído a queria para si. O quebranto seria quebrado e as outras davam-se a conhecer. Mas se aquela que tinha sido picada e por isso perdido o quebranto se via livre do fado, as outras permaneciam bruxas e tratariam de matar o homem se ele algum dia revelasse quem elas eram!

Zé é nome de homem, já se vê. Mas o Zé teve a infelicidade de ter nascido numa sequência de sete irmãos, e por isso foi fadado. Os pais não quiseram quebrar esse fado fazendo um dos filhos ser padrinho de outro, e calhou ao Zé cumprir a sua sina: Zé era lobisomem e os pais carregaram para sempre o peso de não terem quebrado a sina do filho.

" - Que queres tu que te diga Manel, se tenho esta sina?". Assim mesmo o escutei, enquanto me fingia de distraído com uma qualquer brincadeira de criança. Mas o espanto ficou-me marcado: um homem acabava de confirmar diante de mim um dos receios mais primitivos, havia mesmo lobisomens! Assunto de homens sérios e de tino, desta forma eram iniciados os meninos da aldeia nos mistérios do mundo.

Convém aqui dizer que a sina de lobisomem em nada se assemelha à maldição das bruxas: ao contrário destas, ser lobisomem é apenas uma sina que deus dá, mas não há nisso qualquer pacto com o mal.

Havia sinais inequívocos sobre o fado do Zé: um lobisomem tem sempre as sobrancelhas pegadas. O Espaço sobre o nariz nunca está despido, também aí os pêlos nascem. Outro sinal era possuir as nozes dos dedos calejadas por conta de trilhar os caminhos das redondezas em noites de lua cheia, nu e transformado num animal. Sabe-se que um lobisomem ao sair de casa se despe, deixando as roupas viradas do avesso, e ao encontrar o primeiro rasto de um animal nele se espoja, transformando-se nesse animal. Um episódio bizarro traçou definitivamente a sina do Zé. Jovem na força dos 30 anos, numa noite de luar acordou na sua cama, nu como era seu costume dormir. Um frémito, uma febre, uma urgência tomou-lhe conta do corpo e do espírito. Seriam umas quatro da madrugada. Levantou-se da sua cama de eterno solteiro e saiu à rua nu, tal como veio ao mundo. Fosse pela visão do luar sedutor, fosse pela força da sua juventude, ou mesmo pela ausência do corpo tão desejado, o espírito toldou-se-lhe e teve uma violenta erecção. Quis o destino que àquela hora morta viesse a Maria pelo caminho de casa e o visse naqueles preparos! A Maria ali, àquela hora?!

Estacaram os dois frente a frente, o Zé sem reacção, por um segundo, por uma eternidade, a Maria entre o pânico e a vergonha. Não trocaram uma única palavra, viraram costas um ao outro, e o episódio parecia ter terminado ali. Mas a Maria não esqueceu, tal como o Zé. Maria tratou de falar com uma amiga sobre o que presenciara, com o pacto de silêncio que obrigava a amiga a guardar segredo. Ora é bem de ver, a função do segredo não é o de ser guardado. Pelo contrário, ele tem a função oposta de fazer circular as estórias obrigando toda a gente a fingir que não sabe. Não havia que enganar, o Zé era mesmo um Lobisomem e preparava-se nesse momento para sair e cumprir o fado. É nessa altura que uma mulher pode quebrar o encanto: tem que chegar à roupa dele e virá-la do direito. Mas ela corre um perigo enorme, já que o lobisomem presente que o está a ser feito e imediatamente regressa para atacar a mulher com a ferocidade do bicho em que se transformou. Como é de supor, nem a Maria nem nenhuma mulher alguma vez se afoitou para quebrar a sina do Zé.

Havia ainda outro indício: o Zé tinha comprado um pequeno terreno na periferia da aldeia, onde se isolou. Fez aí a sua casa, e num pedaço anexo de terra arável e com água fez uma horta, um pomar e um jardim. Juntamente com outros pedaços de terra nas redondezas arrancava da terra o sustento, jamais tendo conhecido a fome. Para maior desconfiança da aldeia, o Zé nunca fazia mal a qualquer animal: já se sabe, ser homem significa ter coração duro e desapiedado. Os animais inferiores eram para ser dominados e comidos. Ora o Zé vivia rodeado dos seus bichos que tratava com carinho: o burro, uma matilha de cães e um número infindável de gatos. Jamais alguém o viu maltratar qualquer ser vivente: nem um pardal que lhe roubava o trigo por alturas da sementeira ou da colheita, nem o melro que lhe picava a fruta por alturas do Verão. Nada: no coração do Zé não cabia maldade, e se havia ás vezes algum fel, não nasceu ali, foi plantado pela aldeia que aceitava mas não lhe perdoava a sina e que o Zé evitava. Durante o dia preferia ficar em casa a jardinar, outros assuntos tratava-os à noite, trilhando caminhos que evitavam a aldeia.

O Zé isolou-se como tantos outros homens por esse Portugal, por gerações e gerações.

Sim era verdade, o Zé tinha mesmo uma sina. Todos jurariam na aldeia, ainda que em vozes sussurradas, que tal era verdade. Mas a verdade tem graus, e noutro grau todos sabemos que homens não se transformam em bichos nem saem em noites de lua cheia uivando ou grunhindo. A sina do Zé era outra: crime inominável e pecado sem perdão, mas a que deus ou a natureza fadara: o Zé era homossexual. Jamais sentiu desejo ou se interessou por mulheres, e tal sina podia ser aceite, mas tinha que ser simbolicamente transformada. A natureza selvagem, o sexo real ou imaginado, criminoso, estéril e inútil à reprodução social não tinha assento no mundo de então. Antes lobisomem, fera selvagem com alma de homem, do que simplesmente homem que se interessava por outros homens.

Da sua casa o Zé continuava a ver a linha do horizonte e o mar de sempre. Morreu velho, com um gato no colo e rodeados dos seus cães, enquanto o sol mergulhava na vastidão do mar. No seu último suspiro sonhava que atingia finalmente a linha do horizonte. Que a felicidade prometida quando pela primeira vez fitou aquela vastidão de águas finalmente chegara. Que agora sim estava acompanhado pela presença que por toda a vida desejou.

Quando partiu o velho gato saiu vagarosamente do colo do dono. Ele, melhor do que qualquer pessoa, sabia que o dono entrara na derradeira viagem. Fez o seu trabalho. Retribuiu ao seu dono o calor e conforto que sempre recebera, ajudando-o a partir sereno.

Nunca saberemos se os anjos existem. Nunca saberemos de que se disfarçam quando vêm à terra. Nunca saberemos os segredos insondáveis do mundo, onde ás vezes a natureza manda uma coisa e a moral manda outra.

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