segunda-feira, 30 de maio de 2022

Encontros destrutivos

 Quando os espanhóis chegaram ao que é hoje o México encontraram uma civilização muito avançada, os Astecas. Cidades enormes, organização social complexa, matemática e astronomia avançadas. Mas era também uma sociedade agonistica, alicerçada na guerra, no terror, nos sacrifícios humanos constantes. Cortez encontrou-se com Montezuma, o imperador, porque era um conquistador e tinha avidez por ouro, que os Astecas possuíam. E tinha superioridade militar. O imperador bebia por uma taça que era um crânio humano. Cortez ficou impressionado e perguntou porquê beber por um crânio humano, ao que imperador respondeu: "é o crânio do meu irmão". Um dia ele disse que haveria de fazer do meu crânio uma taça por onde beberia, agora sou eu que bebo pelo crânio dele"! Esta realidade está bem retratada no filme "Apocalipto" do Mel Gibson. Mais a sul Pizarro encontrou outro império, o Inca. Era extenso, ia desde o Peru à Patagónia, não tinha escrita, e era um império apolíneo, doce, pacífico, quando comparado com os Maias e os Astecas. Mas também tinha sacrifícios humanos, algo que horrorizava europeus, que colocava os incas na classe de selvagens. Na Europa não se faziam sacrifícios humanos há milhares de anos, e as oferendas humanas ao deus Baal estão bem explícitas na bíblia, sendo Belzebu (o diabo) a encarnação de Baal. Os incas, apesar de pacíficos, foram também dizimados.  Já no território que é hoje o Brasil não havia qualquer civilização. Desconheciam os metais, eram nómadas, guerreavam-se entre si, o canibalismo era comum. O primeiro encontro foi pacífico. Os índios foram até às caravelas de Cabral. Está tudo na carta do achamento do Brasil. Causaram estranheza pela nudez, pela ausência da noção de pudor, e apropriavam-se dos objectos a bordo, porque desconheciam a propriedade privada. O choque foi inevitável, e juntamente com as doenças introduzidas pelos portugueses e demais europeus, para as quais não tinham imunidade, fizeram o genocídio. A simples gripe, o sarampo, a varíola... Terão matado milhões, embora não se saiba quantos, porque o território era gigantesco e não existiam censos. O que eu saliento é o seguinte: foi um genocídio sem justificação, não pelos óbvios padrões de hoje, mas pelos não tão óbvios padrões da época. O choque cultural, a avidez por riquezas, a falta de escrúpulos, a extrema fragilidade da vida, a falta de respeito por ela, fizeram o resto. No entanto, o meu enfoque é evitar a ratoeira de julgar épocas por outros valores que não os vigentes na altura. É errado, inútil, desonesto e perigoso, e pior, desvia o foco, atribui culpas e responsabilidades de hoje a pessoas que já estão mortas há séculos. No Brasil os brancos ofereciam roupas contaminadas com variola aos índios com o propósito de os matar até ao início do século XX. Hoje, fazendeiros matam índios e roubam terra, e religiosos destroem as suas culturas. Isso é crime pela nossa escala de valores actuais. O Brasil possui uma bela constituição, e a carta universal dos direitos humanos também é válida por lá. O que eu vejo é uma acusação comum e corrente de diabilozação do antigo colonizador, cujo ódio se estende até aos portugueses de hoje, e uma ausência de assumpção dos brasileiros da sua história, do seu passado, e sobretudo da sua responsabilidade hoje. É desonesto, infantil, e injusto, e sobretudo inútil para resolver os problemas.
Sabemos porque é assim, vem nos compêndios de antropologia. A criação de nações, as identidades nacionais necessitam sempre de um inimigo, de um oposto (mau), contra um "nós" bom. Os portugueses possuem o seu "maus": a Espanha, de onde nunca vem "nem bom vento nem bom casamento". A identidade nacional brasileira, ainda em plena construção da sua "nation building" foi feita pelas elites contra o velho colonizador "mau". Serviu muito bem o Brasil, cuja identidade nacional ninguém discute, mas teve um preço elevado: distorção da história, fecho sobe si mesmo (o brasileiro comum não escuta nada além do seu português, outras línguas tiveram o ensino proibido para evitar separações, por exemplo o alemão e o italiano). Para o brasileiro comum o passado é um vazio, um buraco negro, ou uma narrativa simplista de um Brasil que sempre existiu, o que é obviamente falso, e que o português apenas roubou, explorou, escravizou e matou. Não é verdade. Foi também isso, mas foi mais do que isso. Portugal criou, a bem ou a mal, um embrião de nação brasileira, que hoje é um país, (e um estado falhado), mas o repertório de que só souberam roubar "nosso ouro" é simplesmente falso. O Brasil e Portugal eram à época um único país, e apenas uma pequena parte desse ouro atravessou o Atlântico.
Quanto a nós portugueses, compete conhecer a nossa história por inteiro. Teve esse lado desumano, pavoroso, ignóbil. É nossa obrigação assumir isso com verdade e rigor. A escravatura, a morte dos índios, o colonialismo foram realidades irrefutáveis. Mas não é menos verdade, fomos inovadores, arriscámos ir desbravar mares nunca antes navegados, criámos uma revolução marítima, geográfica, cartográfica, astronómica. Bem ou mal, a globalização foi iniciada pelos portugueses. Valorizemos o que os nossos antepassados fizeram de bom, deploremos o que fizeram de errado. Sobretudo temos a obrigação de estudar esse passado, aprofundar, corrigir narrativas distorcidas que sempre servem o presente (Portugal ainda está muito agarrado à narrativa do estado novo). Mas não se apague a história com o intuito de aplanar tudo, queimar esse passado, e sobre essa terra queimada criar a nova e derradeira utopia, convencidos que hoje somos melhores e prefeitos. Não somos, e se isso acontecer será a semente da tragédia, porque ignorar ou apagar o passado condena-nos a repeti-lo. Eu não irei por aí!

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