segunda-feira, 30 de maio de 2022

E se um homem e um papagaio forem afinal a mesma coisa?

 


Chama-se Philippe Descola, é francês e foi viver entre os índios Hashuar do Equador para os estudar. Durante o seu estudo percebeu que, à semelhança de muitos outros povos não ocidentais, os Hashuar não possuem a palavra "natureza" pelo facto de não se quererem nem se sentirem diferentes ou opostos a ela! Para os Hashuar um homem e um papagaio são a mesma coisa! Quando o Descola lhes fazia ver que um papagaio era verde, tinha penas e voava, e que um homem não tinha penas, não era verde e não voava, os índios ripostavam: sim, nós sabemos. fisicamente somos muito diferentes. Mas na essência, na alma, um índio e um papagaio são a mesma coisa. Ora, esta visão do mundo e da nossa relação com ele pode ser muito didáctica e proporcionar uma forma de relacionamento com a Terra mais equilibrada e saudável. O que se retira daqui é o seguinte: a nossa relação com o mundo é, como não poderia deixar de ser, uma construção cultural. Acontece que na cultura ocidental a nossa relação com o mundo é de conquista e domínio. Por exemplo, na Bíblia está escrito "Crescei, multiplicai-vos e dominai o mundo". O que o sábio Deus não disse é que a Terra é finita, e que essa visão pode ser uma catástrofe anunciada. Na tradição ocidental e sobretudo a partir do século XVIII o ocidente criou a dicotomia "nós humanos" vs "eles animais, natureza". Nós racionais, eles irracionais. Nós seres com sentimento e emoções, eles não. Eles não sentem, nós sentimos. Curiosamente no ocidente a nossa construção social reconhece que na fisicalidade todos somos iguais (somos todos feitos dos mesmos átomos e moléculas), mas na espiritualidade somos diferentes da suposta "Natureza". Uma visão exactamente oposta à visão dos Hashuar que dizem que na espiritualidade somos todos iguais. A sua cosmogonia é muito mais equilibrada, homem, natureza, rios ou papagaios, somos tudo a mesma coisa. Eles não existem para crescer, multiplicar-se e dominar o mundo. Eles retiram do seu meio apenas aquilo de que necessitam para viver e não usam a lógica da acumulação, do lucro ou do domínio. Vem isto a propósito das infamantes touradas: O touro não é, na visão proposta dos Hashuar, muito diferente de um homem: ele sente, tem medo e quer viver em paz como qualquer um de nós. A algumas pessoas convém acreditar no contrário. É verdade que touradas são tradição. Mas também é verdade que a cultura é dinâmica, não é algo estático no tempo. A civilização constrói-se contra a tradição. Já foi tradição matar condenados em praça pública, lutas de gladiadores, escravatura, proibição de voto às mulheres, só para dar alguns exemplos. A tradição, quando indigna e cruel deve ser deixada no passado. Nada justifica hoje o espectáculo cruel de tortura e morte animal. Isso não nos faz grandes: ao contrário, mantém-nos presos a um passado cruel que todos nós podemos hoje repudiar. É verdade que o homem se ergueu enquanto tal quando começou a comer carne, e que todos nós vivemos num universo cujas regras e leis não escrevemos. Mas também é verdade que esse mesmo universo nos permite criar quadros conceptuais de rosto mais humano. Há uma fronteira clara entre matar por necessidade de alimentos e matar por prazer sádico. Os Hasuar matam e comem animais. E se entendo que a primeira me repugna menos, ainda assim podemos imaginar um mundo melhor onde um dia não será necessário matar para viver. Por isso manifesto a minha vontade: a tourada é um espectáculo cruel e indigno e deve ir parar ao caixote do lixo da história.

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