quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Simplesmente Maria




Chamava-se Maria. Nasceu no ano de 1930, no seio de uma família muito, muito pobre, em que um pai doente, 7 irmãs e apenas um irmão, em plena época de guerra civil em Espanha e segunda guerra mundial só podiam significar uma coisa: fome! E tu Maria, conheceste a fome. Às vezes envergonhada. Com apenas 7 anos andavas com uma amiguita a mendigar. Mas tu tinhas vergonha, a amiga pedia para as duas. Quem seria essa amiga meu Deus? Será que ainda existe? Como eu gostaria de falar com ela. Ainda menina és apanhada pela terrível varíola. Sobreviveste-lhe, ficando como recordação o pouco cabelo que te deixou e que tão bem sabias compor. Mais tarde vens trabalhar como interna para uma casa senhorial em Lisboa. A velha "Conselheiro Arantes Pedroso" torna-se um elo de ligação, até hoje. Duas irmãs, a D. Ilda e a D. Idália. Tu ficas na casa da D. Ilda, a tua outra irmã na casa da D. Idália. Duas senhoras que constroem uma fábrica de chocolates que se tornou uma referência, a REGINA. Como eu lamento nunca ter conhecido esse lugar mítico, os descendentes dessas senhoras, que te trataram tão bem. Quantas vezes nos contaste, tantos anos depois, como gerias o teu magro salário de 80 escudos. Nada ficava para ti. Metade vinha em dinheiro para o avô, outra metade num cesto de mercearia que servia para matar a fome aos que ficavam lá em casa à espera. Quantas vezes nos contavas que ias e vinhas a pé desde a "Conselheiro Arantes Pedroso" até Sete Rios, à casa da D. Idália para poupares os 5 tostões do eléctrico? E o enxoval que construíste à custa de rendas que ias fazendo e vendendo? Só muitos anos depois entendi porque tinhas o dedo mindinho preso. Naturalmente desenvolveste uma tendinite, que durou a vida toda! E as guerras das irmãs para te irem esperar à paragem do autocarro, quando voltavas por alturas do S. Brás, ainda carregada de chocolates que te davam por alturas do Natal e que tu não comias, para guardares para a família?
Como eu entendo agora a adoração que a avó Eva tinha por ti, uma predilecção "pouco" secreta. Naturalmente que nessa vida tão difícil não houve tempo nem dinheiro para a escola. Nunca chegaste a saber nem uma única letra! Anos mais tarde, e a senhora tentava casar-te com o seu motorista. Mas tu, com olhar matreiro, sorrias e dizias que nem pensar, que lhe chamavam "o pisa flores....". Tinhas conhecido um belo rapaz de uma aldeia próxima. Gente também pobre e honrada, a quem a fome passou ao lado porque eram 5 homens, que trabalhavam à jorna. Juntamente com o porco que se matava de ano a ano, lá passaram ao lado da fome. Casaram. Foste viver para a casa do teu belo rapaz, ficaram na casa deles, cuidaste do avô António e da avó Amélia, dois "entrevados" cada um na sua cama. E como eu gostaria de te dizer Mariazinha, que muitos anos mais tarde recebi uma prenda inesperada, um belo e único retrato dos meus avós paternos? Contavas tantas vezes como era difícil o feitio da avó, em contraponto à doçura do avô António: "ó rica, ó filha, quando puderes trás cá um copo de água". As pernas cheias de chagas, que o teu marido e meu pai conseguiu curar. Mas essa é outra parte da história, que merece ser lembrada mais tarde.
Nasceram três filhas, três bonitas raparigas, que ainda hoje são uma boa parte da minha alegria de viver, as minhas adoradas irmãs! Mas apenas três raparigas, e um problema de útero que te fez abortar 3 vezes espontaneamente. Fizeste um tratamento no Instituto de Palhavã, e como o pai queria muito um rapaz, lá se fez mais uma tentativa, e num belo dia de Abril de 1968 nasci eu.

Poderias tu imaginar o quanto eu gostaria que ainda hoje estivesses connosco? Mas a vida assim não o quis. O terrível cancro no encéfalo apanhou-te, cedo de mais para ti, com apenas 55 anos. Cedo de mais para mim, que tinha apenas 13 anos quando adoeceste, e 17 quando partiste. Cedo de mais para todos nós, que ao fim de tantos anos ainda te lembramos, já sem dor, mas com uma saudade que não tem fim... A tua alegria de viver, as cantigas pela manhã enquanto abrias as janelas e remexias os capelos da cama. A higiene das filhas e do filho, sempre cuidada. Os elogios às filhas e filho do João e da Carmo, sempre tão educados. Claro, nunca naquela pobre casa se ouvia um palavrão, tão comum por aquelas paragens. Sem água canalizada em casa, sem electricidade, com quartos de "telha vã" por onde entrava o frio do inverno e as pedrinhas de camarinha, que eu na ignorância da minha infância feliz de menino mimado apanhava alegremente, quando passavam por entre as telhas. E o soalho apenas nos dois pequenos quartos, enquanto a "sala" e a cozinha continuaram de terra batida, ainda depois de tu partires. A água, a luz, o chão arranjado, tudo isso veio depois. De nada disso usufruíste.
Como sentirás tu, agora desse sítio improvável onde te encontras, aqueles que amaste? A tua mais velha ainda a estudar, mãe "velha" de um rapazinho lindo e educado. A tua "do meio", lá tão longe com duas filhas lindas, próximas de nós pelo coração e pela moderna tecnologia, que nos permite falar, e, mais recentemente, ver! E a mais nova, trabalhadora incansável, coração de ouro, uma lutadora nata? Sabes, Mariazinha, que apesar dos 24 anos passados sobre a tua partida, a tua recordação permanece bem viva e presente. E embora este diálogo só possa ser feito num sentido, como eu gostaria de saber como te sentirias em relação ao teu mais novo. Sabes que sigo um caminho que é só meu, que nunca deixei que a cabeça de outros pensasse pela minha. Como te sentirias com um filho a estudar para "doutor", quando tu, e o teu belo rapaz que envelheceu, nunca tiveram a oportunidade de saber uma única letra, a quem a vida roubou essa liberdade única que é saber ler e escrever, essa via de libertação do espírito?
O teu belo rapaz é hoje um velhinho que vive em parte comigo. Quase sem mobilidade, corpo de dores provocadas por um esqueleto cheio de artroses que puxou por uma enxada toda uma vida, impedindo desta forma que nós alguma vez conhecesse-mos a fome, e por um coração que só consegue bater à custa dos muitos comprimidos que toma todos os dias. Corpo cansado da vida mas de espírito ainda a ela agarrado. Enquanto vou escrevendo estas linhas, ele vai passeando pela casa, toma os seus remédios, arruma o seu "burnel". Sabes, Maria, que eu hoje vivo numa casa muito confortável e que já fui ligar o aquecimento para ele acordar amanhã com menos dores? Pudesses tu alguma vez na tua vida sonhar com o conforto em que eu hoje vivo! E mesmo que o aquecimento seja caro, a tua mais nova dá uma bela ajuda, que nós continuamos a ser hoje aquilo que sempre fomos. Uma família unida. Daqui a minutos desço, que a tua mais velha (irmã, segunda mãe, amiga de sempre) vive aqui ao lado. Criou família, arranjou "o seu belo rapaz", foi mãe tardia, deu-me a imensa alegria de um menino que passou hoje o dia comigo, que é das maiores alegrias que tenho. Nestas últimas horas de 2008 relembro-me de ti, Mãe. Com saudade imensa. Mas sem dor.
Para poder continuar o caminho, concedo a mim mesmo que nada é em vão, embora eu não possa abarcar o significado da existência.

Sem comentários:

Enviar um comentário