segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Palavras para um amigo

Olho de relance o telescópio. Engenho magnífico de vidros espelhados, tubos e madeira. Objecto semi-tosco, com a pintura maltratada, a destoar na sala nova, inestético, como me disse um outro amigo um dia. Objecto de evasão, gozo de ter saído das nossas mãos, e não de uma loja qualquer, pronto a usar. Ando há anos a ganhar coragem para o pintar de novo. De esmalte branco, como me ensinas-te um dia, porque é a cor que melhor reflecte a luz solar, para que a óptica não aqueça, deformando-se e inviabilizando as imagens do cosmos, que queríamos tão nítidas quanto possível. Sabes, apenas alguns amigos mais chegados - para além da família próxima, é claro - sabem que o mérito deste objecto que não perdeu aura de fantástico, apesar dos mais de 20 anos passados, não é apenas meu, mas também muito teu. Tinhas já feito o teu próprio telescópio, seguindo a "bíblia" do também saudoso Mestre. Espelho esférico, bastante mais fácil de fazer. Quiseste inovar, e um ano depois de andarmos a cortar vidro, as esmerilar vidro, a polir vidro, decidiste que o meu telescópio seria melhor. Eu teria ficado pela esférica. Tu insististe, e partimos para a parábola. Horas infindáveis, noites a fio na APAA a medir e a corrigir a curvatura do espelho com o auxílio do aparelho de Foucault. Esperas intermináveis para que o calor das mãos passado para o vidro se dissipasse, que o comboio passasse por baixo dos nossos pés pelo túnel do Rossio, que os eléctricos acalmassem a sua correria na rua, para que o edifício não trepidasse, para que a temperatura estabilizasse, e para que as medidas fossem fiéis. E foram. 1/27 de onda, reduzido para 1/20 de onda após a aluminização! Um ano depois, e o magnífico aparelho estava a funcionar. Lembro o primeiro espelho secundário que não tinha qualidade suficiente, o aborrecimento de não ter ainda um buscador, para arrelia nossa. Na varanda da tua casa, com um Júpiter a faiscar no céu, e nós nem sequer conseguia-mos apontar-lhe a máquina! Mas enfim, retocámos o que faltava. Depois disso foram anos de pura evasão. Tempos depois, resolvias partir para outras vivências. O tempo passa, o corpo transforma-se, os sonhos e as urgências tornam-se outros. Pena que às vezes se transformem em pesadelos. Sabes, Camacho (agora já te posso chamar assim, sabes que é apenas uma provocação, os amigos próximos sabiam que detestavas ser chamado assim), às vezes os amigos mais próximos preocupavam-se contigo. Um dia, no observatório do Mestre, este confidenciou-me algumas preocupações acerca de ti. Porque nós gostava-mos mesmo de ti. Tinhas uma alma linda, num corpo que não parecia obedecer à ditadura moderna de beleza. Não que fosses um homem feio, mas também não eras bonito. Tinhas passado nas Amoreiras, "catrapiscas-te" uma miúda gira de uma loja, que não te ligou nenhuma. Como querias ter a atenção dela a todo o custo, resolves-te simular um roubo de caixa. Logo tu, que nem um chupa roubavas em miudo, que nunca roubas-te nada a ninguém. A miúda a accionar o alarme, os "gorilas" a aparecerem, a "convidarem-te" para os acompanhares, e tu, com alma de cordeirinho, a figir-te de lobo, lá vais. O resultado só podia ser um. A valente tareia que apanhas-te! Apesar do enorme respeito que a figura do nosso Mestre nos impunha, não consegui conter o riso. Só se perdeu alguma que tenha caído no chão. Até o mestre se riu comigo. Confidenciou-me então que às vezes tinhas atitudes pouco convencionais. O teu herói lá do bairro era um "acelara" que andava de moto a aterrorizar o bairro. Algum tempo depois começas a dar aulas no secundário. Resolves fazer um teste aos miúdos, para de seguida, no fim da aula, os obrigares a pôr amarfanhados no cesto do lixo! Nesse mesmo ano, no Carnaval, resolves ir dar aulas de peruca amarela!
Perdemos-te o rasto. Tempos depois um outro amigo confidencia-nos que tinhas conhecido uma... como chamar-lhe? mulher? Uma infeliz, viciada em drogas duras. Partes para a aventura e para a espiral. Perdes o emprego de professor, és posto fora de casa pela mãe, começas a mendigar. Tu, com um curso superior, com uma possibilidade de emprego, não conseguis-te resistir aos encantos femininos. Encontro-te um dia à porta da "Versalhes" a pedir. Quando te digo que não precisas de pedir, respondes-me que não pedes, andas antes a "cravar otários"! Fico a remoer, incapaz de responder a um amigo que decidira dar-se a perder. Tempos depois volto a encontrar-te de novo no metro das Picoas, a "cravar". Arrelio-me contigo. Digo-te que o que falta é um pai mais próximo, que te dê uma tareia daquelas de partir um ou dois ossos. Os burros - digo-te - quando são geniosos, põe-se-lhes um freio nos dentes e faz-se-lhes a muda a puxar. - Não, isso não, dizes tu -, e continuas a "cravar". Sabes, ainda hoje me questiono se não te teria feito um favor em dar-te uns valentes murros, já que o pai continuava a exercer a profissão de cirurgião cardíaco lá longe, e não te deitava a mão. Talvez ainda hoje estivesses conosco, a rir dos tempos de juventude. Tu preferiste a espiral. A "menina", como tu começas-te a referir-te à tua companheira, estava seropositiva. Nasce uma criança dessa união de loucos, e nasce seropositiva. Não sei se ela ainda existe. Nunca cheguei a perceber se apenas nasceu com anti-corpos ao HIV ou se nasceu já contaminada. Perdes a custódia da criança. a companheira morre (de overdose, de SIDA?). Dizes-me mais tarde que não te contaminou, nem te passou o vicio da heroína. Não me convences. Muitos anos depois sei que de facto passas-te a consumir. Tentas-te recompor a tua vida, voltas a dar aulas. Há uns anos um amigo dos "tempos das estrelas" liga-me da Suíça. O nosso Camacho estava morto. Apareceu dentro de um poço, semi-nu, afogado. Fico aturdido, incrédulo. Nunca cheguei a saber o que se passou. Nenhum de nós. No meu espírito fica a convicção de contas de drogas não resolvidas. Pagas-te a loucura com a vida, não creio que tenha sido suicídio, vivo na convicção o homicídio. Poucos anos depois o frágil coração do nosso Mestre resolve parar. A colecção dos meus mortos vai crescendo. Inaugurada pela mãe, quando eu tinha 17 anos, vai aumentando inexoravelmente. E sabes Camacho, que eu não quero pintar de novo o telescópio, porque aquela foi a nossa pintura, porque as marcas das tuas mãos estão lá, embora apenas eu as possa decifrar. Pintar de novo o aparelho seria apagar as memórias que o objecto transporta consigo. E eu não quero apagar a tua memória.

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